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Festival de Berlim 2025 - Dia #06 Festivais e Mostras

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Dia 6

21) Sob nenhuma métrica o cineasta Richard Linklater poderia ser considerado um fracasso – e, no entanto, por mais admirado que seja dentro da própria indústria cinematográfica, eu ainda o classificaria como um artista subestimado. Dono de uma versatilidade impressionante, ele transita com facilidade entre projetos grandes e pequenos, entre o cinema de gênero e obras que desafiam qualquer categorização, entre o industrial e o independente – e seu mais recente trabalho, Blue Moon, é um exemplo perfeito dessa habilidade. Narrado basicamente em tempo real, carregado de diálogos e ambientado em um único local, o filme poderia facilmente se tornar um exercício tedioso de autoindulgência, mas, graças à direção habilidosa de Linklater e às performances brilhantes de seu elenco, acaba se estabelecendo como uma obra que jamais deixa de fascinar e envolver o espectador.

Partindo do roteiro original de Robert Kaplow (e é importante observar que se trata de um original, já que a estrutura pode sugerir raízes no palco), o longa é centrado no letrista Lorenz Hart (Ethan Hawke), que, apesar de ter sido parceiro do celebrado Richard Rodgers por mais de 20 anos, acabou sendo ofuscado pela fama da dupla que este formou posteriormente com Oscar Hammerstein – e é justamente a noite de estreia de Oklahoma!, primeiro projeto de Rodgers & Hammerstein, que concentra a ação do filme. Feliz pelo amigo, mas machucado por sentir-se rumo ao esquecimento, Hart chega mais cedo ao lendário restaurante Sardi's, ponto de encontro da elite teatral de Nova York no qual acontecerá uma recepção para a equipe do musical – e ao longo da noite acompanharemos suas várias conversas com o bartender Eddie (Bobby Cannavale), com o escritor E.B. White (Patrick Kennedy) e com o próprio Rodgers (Andrew Scott), além, claro, da bela Elizabeth Weiland (Margaret Qualley), uma jovem pela qual está profundamente apaixonado.

Desafiando a convenção de que no Cinema o imperativo é mostrar em vez de contar (e comprovando que a Arte jamais deve se render a regras, o que a engessaria), Linklater constrói a narrativa quase inteiramente através de diálogos, jamais recorre a flashbacks ou outros artifícios: quando Hart conta uma história – e ele conta várias -, o cineasta mantém sua câmera presa ao personagem no presente, permitindo que sua retórica articulada, associada ao carisma de Ethan Hawke, mantenha o público atento a cada uma de suas palavras. Inteligente, divertido e culto, Hart é capaz de fazer referências que vão de Shakespeare a Casablanca, de tecer análises cuidadosas das letras e métricas de suas próprias composições e daquelas concebidas por outros, mas também de se entregar a anedotas vulgares e juvenis. Autodestrutivo e lutando contra o alcoolismo e a depressão, o sujeito permite que Hawke, um ator talentoso que aqui faz sua nona colaboração com Linklater, explore as mais diversas nuances de sua personalidade, criando o retrato de um homem cativante e hostil, confiante e inseguro, narcisista e carente em medidas iguais. Surgindo como uma metralhadora verbal, mas também capaz de sugerir o tumulto interior de Hart através de um simples olhar ou de uma pausa bem colocada, Hawke oferece em Blue Moon uma das melhores performances de sua já rica carreira.

Dito isso, é claro que o potencial de um intérprete é sempre maximizado pela competência do elenco que o cerca – e neste sentido Ethan Hawke é premiado com companheiros de cena impecáveis: Bobby Cannavale, por exemplo,

A interação de Hart com os outros personagens é outro ponto alto do filme. Cannavale, como o bartender, poderia facilmente ter se tornado apenas um avatar do espectador como receptor dos monólogos do protagonista, mas confere ao sujeito personalidade, presença de espírito e sensibilidade – como, por exemplo, ao reconhecer que Hart precisa de uma bebida mesmo tendo sido instruído a não lhe servir álcool. Do mesmo modo, seria fácil para Andrew Scott retratar Richard Rodgers como um antagonista, como alguém cujo sucesso representa a decadência do ex-parceiro; em vez disso, Scott jamais deixa de evocar o carinho e o respeito que Rodgers sente por Hart por mais exausto que esteja diante de sua instabilidade e do longo período em que teve que lidar com os constantes problemas do outro enquanto compunham. Para completar, Margaret Qualley evita que Elizabeth surja como mero interesse romântico, como uma beldade inalcançável: sim, o espectador reconhece (muito melhor e mais rapidamente que Hart) a impossibilidade de qualquer envolvimento entre os dois, mas a atriz jamais permite que a garota soe como uma pessoa fria ou interesseira que identifica a carência de um homem vulnerável e a explora para benefícios próprios; há ternura em suas interações com o letrista.

Porém, além de conduzir bem seus atores (e este sempre foi um dos pontos fortes do cineasta), Linklater confere dinamismo a uma narrativa que poderia facilmente soar estática ou teatral na tela: além da câmera fluida, que se move pelo ambiente de forma orgânica (e que também sabe quando deve se manter parada e se concentrar nas performances), a abordagem do diretor inclui um controle preciso do tempo na diegese – leia-se: no universo do filme -, mantendo a impressão de que tudo transcorre em tempo real enquanto, na prática, acelera os acontecimentos para que uma noite de celebração possa ser encenada em apenas 100 minutos de projeção. Assim, aos poucos percebemos como o restaurante vai se enchendo e ficando vazio e, não menos importante, como a energia dos personagens se altera ao longo da noite.

Ainda que se apresentando como estudo de personagem, Blue Moon sabe estar lidando com um universo habitado por indivíduos que têm a criatividade como ganha-pão (além dos profissionais da Broadway, há o escritor E.B. White, autor de A Menina e o Porquinho e cujo O Pequeno Stuart Little ganha uma referência divertida durante a narrativa); assim, é natural que inclua discussões sobre a natureza da Arte e sobre como tentar conceber algo inofensivo é um contrassenso para aqueles que usam a imaginação para se expressar. Sim, a inocuidade é financeiramente rentável ao atender aos menores denominadores comuns – se ninguém se ofende, todos se tornam “consumidores” em potencial (e se uso o termo “consumidor”, é porque sob esta abordagem a obra já se tornou um simples produto – ou, no vocabulário atual, “conteúdo”).

Contudo, “desafiar” não implica necessariamente em agressividade, o que é um equívoco comum entre certos artistas; Blue Moon, por exemplo, não abandona suas ambições temáticas e estéticas, mas tampouco sente a necessidade de ser “controverso” ou “polêmico” (rótulos que criadores inseguros de seu valor amam abraçar). Ao retratar um homem complexo, um artista disposto a olhar para si mesmo e para o mundo através de lentes críticas, o filme já inspira, pelo exemplo, uma postura menos passiva e mais questionadora por parte do espectador. Muitas vezes, isto já é mais do que o suficiente.

22) Exibido como parte da seção Forum do Festival de Berlim, Holding Liat é um documentário que, apesar de partir de uma narrativa pessoal — o sequestro de uma mulher e seu marido durante o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 —, transcende o individual para se tornar uma reflexão surpreendentemente multifacetada sobre o conflito envolvendo Israel e a Palestina. Realizado por amigos da família Beinin, o filme consegue desde o princípio acesso irrestrito às conversas entre o governo israelense e os pais de Liat - Chaya e Yehuda Beinin - enquanto acompanham as negociações para a libertação dos reféns e a frustração crescente de Yehuda diante da aparente inação do regime de Netanyahu, que se mostra mais interessado em usar os ataques como desculpa para dizimar palestinos do que em resgatar os cidadãos levados pelo Hamas (aliás, sugiro que leiam o texto que escrevi sobre ume documentário que lida especificamente com esta questão: The Bibi Files).

Protagonista real do longa, Yehuda é uma figura admirável: progressista e crítico ferrenho do governo de Benjamin Netanyahu, ele é enfático ao condenar a resposta genocida de Israel ao ataque de 7 de Outubro, sendo revelador, por exemplo, como seu carro traz um adesivo de Bernie Sanders, o que o coloca à esquerda de 90% do partido Democrata dos Estados Unidos (onde ele nasceu, tendo se mudado para Israel alguns anos antes). Determinado a trazer a filha de volta, ele decide empregar a cidadania norte-americana de Liat como arma política, pressionando o governo de Joe Biden a intervir na questão e visitando congressistas ao lado de outros familiares de reféns a fim de obter algum tipo de garantia de que algo será feito com urgência – um esforço que logo dá indícios de ser em vão, já que tanto os políticos republicanos quanto os democratas demonstram apatia e, no caso de alguns (como o repugnante Mitch McConnell), quase preguiça em ouvir aquelas pessoas por alguns minutos.

Mas se Yehuda, por mais progressista que seja, ainda não consegue se libertar da ideia de que “os dois lados estão errados”, o mesmo não pode ser dito sobre seu irmão Joel, um professor de História que não apenas condena as ações recentes de Israel como traça uma linha direta desde o Nakba de 1948, quando mais de 700 mil palestinos foram expulsos de seus lares pelos invasores sionistas, até o presente, demonstrando através de fatos como o Estado de Israel vem promovendo de forma sistemática o genocídio daquele povo há décadas.

Igualmente digno de aplausos é (e acho meio pavoroso usar a palavra spoiler ao discutir um documentário, mas vá lá: spoilers) o posicionamento da própria Liat depois de ser libertada, quando, em vez de se mostrar vingativa ou rancorosa, denota ter se tornado mais sensível à questão palestina – uma postura que também era a de seu marido, que costumava dizer, ao ouvi-la reclamar da vida no kibutz, que a existência “do outro lado da cerca” era infinitamente pior. (Dito isso, o filme falha ao não apontar de modo mais claro como só o fato de viverem em um kibutz construído em terras que antes pertenciam a famílias palestinas já representava um ato de violência.) Relatando as conversas que teve com parentes de seus sequestradores, que inicialmente a abrigaram em suas casas, Liat não chega a justificar as ações do Hamas, mas demonstra enxergá-la com mais nuances do que boa parte da mídia corporativa mundial – e ao guiar seus alunos em um museu dedicado ao Holocausto ela relembra a resistência dos judeus no gueto de Varsóvia e aponta as similaridades entre estes e os palestinos que ainda hoje lutam pelas terras que lhes pertenciam.

Equilibrando-se bem entre o pessoal e o político, Holding Liat argumenta como, para quem vive sob a opressão do apartheid imposto pelos sionistas, estes dois lados se sobrepõem quase totalmente.

23) Ao escrever sobre What Marielle Knows, também exibido na mostra competitiva da Berlinale, comentei como às vezes uma obra cria uma premissa interessante e a desperdiça por não saber ou por não querer explorá-la, citando aquele longa alemão como exemplo positivo de um realizador que desenvolve bem o conceito original. Infelizmente, o argentino A Mensagem vai na direção oposta, apresentando uma ideia curiosa ao espectador apenas para praticamente ignorá-la nos 90 minutos seguintes.

Escrito por Martín Felipe Castagnet e por Iván Fund (que assina a direção), o filme acompanha as viagens de um pequeno núcleo familiar formado por Anika (Anika Bootz), uma criança com o dom de se comunicar com os espíritos dos animais – estejam estes vivos ou mortos -, sua avó Myriam (Mara Bestelli) e o companheiro desta, Roger (Marcelo Subiotto). Percorrendo o interior do país e visitando pequenas cidades enquanto visitam clientes interessados em saber o que seus bichinhos de estimação estão sentindo/pensando, os três passam os dias e as noites numa van equipada com um banheiro improvisado e cujo interior se transforma em um quarto apertado que mal tem espaço para o pequeno colchão sobre o qual dormem – e é a dinâmica do trio que interessa aos realizadores.

Usando o talento de Anika como mera desculpa para colocar aqueles indivíduos na estrada, A Mensagem não está interessado em investigar as implicações éticas e emocionais das “leituras” da menina ou mesmo a moralidade dos adultos que a exploram; em vez disso, passamos a maior parte da projeção observando o vazio de seus cotidianos enquanto Fund investe em planos e mais planos que exibem as paisagens que atravessam e as estradas sobre as quais dirigem, empregando também um tempo considerável em closes que trazem os personagens admirando os arredores em silêncio – e o resultado não é a criação de uma narrativa contemplativa que transforme o comportamento daquelas pessoas em algo instigante, mas sim o de levar o espectador a suspeitar que o cineasta está tentando estender artificialmente a duração de um filme que talvez tivesse rendido um curta-metragem curioso.

Sem conseguir sequer assumir uma posição acerca dos intuitos de Myriam, cujos discursos sobre o dom da neta soam como pura picaretagem embora saibamos que este é real, a obra jamais consegue desenvolver os personagens satisfatoriamente, o que é um problema grave quando consideramos que qualquer traço de trama é descartado em prol de uma narrativa movida apenas pela personalidade daquelas pessoas. Para piorar, as diversas (e repetidas) passagens que enfocam várias espécies animais soam como um esforço demagógico de expressar amor pela natureza, pelo meio ambiente, mas são rodadas de forma tão burocrática que o público provavelmente não terá uma reação maior do que “olha, uma capivara!”.

Por outro lado, 90 minutos encarando uma capivara teriam sido mais envolventes do que aquilo que o diretor acabou atirando na tela.

24) Há um problema recorrente em narrativas que giram em torno de conspirações: depois de envolverem o público com seus mistérios e possibilidades, várias destas obras acabam por decepcionar quando a verdade começa a ser revelada, já que a imaginação do espectador – ou mesmo o puro sentimento de curiosidade – por vezes é mais forte do que aquilo que os realizadores haviam concebido.

O que nos traz ao austríaco Mother's Baby, parte da mostra competitiva de 2025.

Apresentando-nos inicialmente a um casal prestes a ser disparado naquele brinquedo de parque de diversões que costuma registrar em vídeo as reações apavoradas dos participantes e publicá-los na Internet (e não sei como já não haviam surgido em alguma produção), o filme estabelece em seus primeiros segundos a sintonia e o carinho entre a maestrina Julia (Marie Leuenberger) e seu companheiro Georg (Hans Löw), que, apaixonados, estão determinados a ter um bebê apesar de um histórico de tentativas malsucedidas. Ou talvez ele esteja determinado, já que a diretora Johanna Moder logo planta indícios do desinteresse de Julia – como, por exemplo, ao enfocá-los em sua primeira visita a uma clínica de inseminação artificial, quando Georg se dedica a ouvir as explicações do médico, o dr. Vilfort (Claes Bang), enquanto sua esposa se distrai observando um aquário. Meses depois, quando o bebê nasce em um parto difícil – que Moder torna angustiante ao empregar um travelling circular em torno da mesa de cirurgia -, algo parece dar errado e a criança é levada para outra sala sem que explicações sejam oferecidas aos pais, que finalmente sentem algum alívio quando todos retornam com o recém-nascido já recuperado. E é aí que a inquietação da protagonista se torna maior, já que por algum motivo ela sente que aquele não é seu filho.

A partir deste ponto, Mother´s Baby segue uma tradição do suspense (e do horror): narrativas sobre mulheres que suspeitam de maquinações sinistras à sua volta, mas não conseguem convencer ninguém sobre suas desconfianças, sendo questionadas inclusive quanto à sua sanidade. Neste aspecto, o longa é hábil ao ressaltar o isolamento crescente de Julia à medida que esta percebe - ao lado do espectador, sempre ancorado ao ponto de vista da personagem - alguns elementos estranhos sobre o bebê, que, embora tenha uma audição perfeita e desperte com um leve estalar de dedos, dorme pesadamente mesmo que sua mãe aumente ao máximo o volume das músicas que escuta.

Beneficiado pela boa trilha instrumental de Diego Ramos Rodriguez, que ajuda a construir uma atmosfera de angústia sem se tornar excessiva, e pela ótima direção de arte de Hannes Salat, que ancora em ambientes estéreis e impessoais aqueles que despertam a desconfiança de Julia, o filme também emprega um recurso eficiente para evocar a paranoia da personagem ao adotar uma câmera que parece flutuar ao segui-la em alguns momentos, como se ela estivesse sempre sendo monitorada. Além disso, a performance de Leuenberger é eficaz tanto ao evocar seu desespero e sua angústia quanto ao sugerir como o instinto materno não é algo que lhe vem facilmente: ainda que determinada a descobrir a verdade sobre seu bebê e preocupada com seu destino, Julia se mostra desconfortável, por exemplo, quando ouve o marido se referir a ela como “mamãe” – e com isso Mother´s Baby faz uma crítica à expectativa social de que toda mulher abrace a maternidade como seu destino desejável e inevitável (um apontamento dividido com outro filme da competitiva, o excelente If I Had Legs, I´d Kick You, que discuti anteriormente).

Mas não só: salientando também a importância da sororidade, o roteiro escrito pela cineasta ao lado de Arne Kohlweyer não por acaso traz outra mulher (e mãe) como única pessoa a apoiar Julia, já que entende não só as dificuldades naturais de cuidar de um bebê como também a exigência de perfeição e sacrifício maternos por parte da sociedade – uma exigência nem sempre dirigida aos pais, frequentemente ausentes no cotidiano familiar.

É uma pena, portanto, que a obra perca força no terceiro ato à medida que os mistérios vão sendo solucionados – não que fossem realmente enigmáticos, já que não é difícil prever a direção para a qual o roteiro está caminhando antes mesmo que a projeção chegue à metade. Para piorar, o desfecho em si é súbito e insatisfatório ao deixar várias pontas soltas em prol de uma ambiguidade que pouco acrescenta à experiência.

A performance de Marie Leuenberger merecia uma conclusão melhor.

25) Algo está errado. É isso que o espectador sente já nos primeiros segundos de Honey Bunch, antes mesmo de ter a chance de conhecer os personagens e de começar a entender o que estão vivendo. Eficaz em estabelecer uma atmosfera pesada e angustiante sem a necessidade de explicar a razão por trás deste tom, o filme, exibido em sessão especial da Berlinale, representa uma experiência inquietante que apenas lentamente permite que a dimensão real de seus horrores tome conta da projeção, quando então saltamos da ansiedade ao pesadelo.

Ambientado nos anos 70 e com uma abordagem estilística que remete a clássicos similares daquela década - como O Homem de Palha e Inverno de Sangue em Veneza -, o filme acompanha Diana e Homer (Grace Glowicki e Ben Petrie, também casados na vida real), enquanto chegam a uma clínica que funciona em um velho casarão no meio do nada. Sofrendo dores constantes, apresentando dificuldades para se locomover e atormentada por lapsos de memória desde que sofreu um acidente de carro, Diana é convencida pelo companheiro a se submeter a um tratamento revolucionário oferecido por um médico que promete não apenas eliminar as sequelas neurológicas, mas melhorar suas condições físicas de modo geral. No entanto, não demora muito até que Diana passe a ter visões perturbadoras e a desconfiar de que algo sinistro está ocorrendo – possivelmente com a anuência de Homer. Lidando continuamente com a enfermeira/governanta Farah (Kate Dickie), já que o misterioso dono da clínica jamais está presente, a protagonista é acompanhada em seu tratamento por apenas uma outra paciente, a jovem Josephina (India Brown), que conta com o apoio entusiasmado e esperançoso de seu pai Joseph (Jason Isaacs).

Dirigido e roteirizado por outro casal da vida real, os canadenses Dusty Mancinelli e Madeleine Sims-Fewer, Honey Bunch investe em uma direção de arte que contribui imensamente para sua atmosfera opressiva, estabelecendo o casarão no qual a maior parte da ação transcorre como um lugar de paredes escuras e espaços claustrofóbicos, chegando a incluir um elemento clássico do gênero: o labirinto vivo situado nas proximidades. Enquanto isso, a fotografia de Adam Crosby adota uma luz esfumaçada que reforça a sensação de confusão da protagonista, como se sua névoa mental se manifestasse no ambiente ao seu redor – e os zooms recorrentes, outra referência às inspirações cinematográficas da década de 70, funcionam quase como pontuações, surgindo como pontos de exclamação que nos alertam sobre perigos invisíveis.

Mas há muito mais no arsenal dos cineastas: vez por outra, planos brevíssimos, quase subliminares, invadem a ação ecoando as memórias fragmentadas de Diana e plantando pistas para revelações posteriores, ao passo que os quadros que mostram a protagonista ou seus reflexos sendo cobertos por outras pessoas são inteligentes de um ponto de vista narrativo (ressaltando o sentimento de estranhamento geral) e temático (algo sobre o qual pouco posso dizer, já que envolveria spoilers).

Oferecendo oportunidades únicas a Grace Glowicki, que tem a chance de exibir sua versatilidade em um papel cujas facetas vão se multiplicando à medida que a história avança, o longa também merece créditos pela complexidade de seus “vilões” (reais ou imaginários, já que Diana passa boa parte da trama no escuro): jamais enxergando as ações destes personagens em preto e branco, o roteiro permite que suas motivações se tornem compreensíveis para o espectador mesmo que este não aprove o que fazem – e neste sentido Ben Petrie faz um trabalho brilhante, já que as razões de Homer para levar a esposa para a clínica podem ser vistas como benigna ou suspeitas, mantendo o suspense acerca da natureza do sujeito quase até o fim.

Quanto às revelações da segunda metade da projeção (que obviamente não discutirei em detalhes), é importante fazer um contraponto ao que escrevi sobre Mother´s Baby: se naquele filme a narrativa desmoronava quando seus segredos eram desvendados, aqui estes tornam a experiência mais interessante - embora, claro, possam soar… extremos para alguns espectadores.

O que ainda é melhor do que apenas repetir lugares-comuns do gênero.

18 de Fevereiro de 2025

Sobre o autor:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
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