Seja bem-vindx!
Acessar - Registrar

VIAGEM À ITÁLIA Cinemateca

Percebi pela primeira vez que… somos como estranhos um para o outro. 

 
Diga! Eu quero ouvir você falar que me ama.

Grande fracasso de bilheteria, esnobado e ridicularizado no ano de seu lançamento, Viagem à Itália (1954), dirigido pelo cineasta italiano Roberto Rossellini, foi tido por boa parte dos críticos da época como uma aberração por focalizar a vida de um casal de classe média-alta (ainda por cima inglês), entediado, aborrecido e desocupado, em uma trama em que nada acontece e que não vai a lugar nenhum. "Quanto desperdício escalar Ingrid Bergman e George Sanders, duas estrelas consagradas, num filme como esse!" – pareciam exclamar os críticos em uníssono. Como já sabemos, na história do cinema, o mundo dá voltas. Viagem à Itália foi resgatado do limbo pelos críticos do Cahiers du Cinéma, que o alçaram à condição de obra-prima: “o primeiro filme moderno”. Tais críticos (ninguém menos que Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, François Truffaut e Claude Chabrol) iniciariam no final dos anos 50 o movimento da Nouvelle Vague, um dos mais importantes da história do cinema. Hoje, Viagem à Itália é visto como um marco cinematográfico, uma obra-prima essencial que influenciou toda uma geração de grandes cineastas. 


Eu queria que você descansasse. Não me passou pela cabeça que era tão chato para você ficar sozinho comigo.

Em Viagem à Itália, Katherine (Ingrid Bergman) e seu marido Alex (George Sanders) fazem uma viagem a Nápoles para acertar a venda de uma propriedade que um tio deixara de herança. Essa viagem de negócios (e de prazer, como acrescenta Katherine) acaba por revelar o desgaste da relação do casal. Ao sair da rotina doméstica, os dois personagens se veem diante do desafio de suportarem a companhia um do outro. A convivência revela-se cada vez mais difícil à medida que o filme avança. Ambos começam a questionar suas escolhas, seus sentimentos e a possibilidade de continuarem casados. O conflito de personalidades contribui para o distanciamento do casal. Se Alex é um homem extremamente cínico, crítico e seco, Katherine é uma mulher carente, romântica e frustrada. O maior problema do casal, no entanto, é a dificuldade que ambos têm de expressar seus reais sentimentos. Um jogo de forças, provocações e ciúmes se instaura entre eles, já que nenhum dos dois quer dar o braço a torcer e assumir seus medos e angústias.

 
Essa é a primeira vez que estamos verdadeiramente sozinhos desde que nos casamos.

É interessante como Rossellini estabelece uma relação entre o descobrimento de um território novo, de uma cultura diferente e a irrupção da crise no casamento dos protagonistas. A Itália é um ambiente completamente exótico (por vezes inóspito) para Alex e Katherine e a viagem os deixa claramente ansiosos e nervosos. O casal, habituado à ordem e à serenidade de sua rotina na capital inglesa, se vê repentinamente mergulhado no caos e na vivacidade do modo de vida italiano. Alex, um homem de negócios, que aparentemente vive para o trabalho, é obrigado a ficar à toa, o que é definitivamente angustiante para ele. Algo parecido ocorre com Katherine. Mais aberta à cultura local, ela tenta ocupar seu tempo com passeios turísticos, mas se vê atormentada pela solidão. Fora de seu habitat natural, os personagens se sentem vulneráveis. A descoberta de um novo mundo, o encontro com o Outro, provoca o olhar dos personagens para a sua própria individualidade e para o tipo de relação que eles consolidaram ao longo dos anos. O ócio e o tédio que eles experimentam durante a viagem contribuem para que eles se confrontem com certas questões que andavam adormecidas.

 
Após oito anos de casamento, parece que a gente não conhece nada um sobre o outro.

Rossellini confere um tom meditativo e misterioso a seu filme. O diretor foge da dramatização e do exagero, focalizando o crescente desconforto dos personagens e a dolorosa tomada de consciência do casal sobre a realidade de seu casamento. As manifestações culturais, a religião, as crenças locais são exploradas brilhantemente pelo cineasta. O choque cultural e a alteridade são fontes de estranhamento e reflexão para os personagens. A fertilidade das mulheres italianas faz com que Katherine questione sua decisão de não ter filhos. A exumação dos corpos, moldados em gesso, de um casal, em Pompeia, emociona e perturba os personagens e os fazem encarar o fato de que talvez não terminem juntos os seus dias. Os corpos dos amantes petrificados, vítimas do Vesúvio, é o próprio símbolo do amor. Trata-se de uma imagem terrivelmente comovente para Alex e Katherine, que se veem às vésperas de uma separação. Eles ainda se amam, obviamente, mas o orgulho e a dificuldade de comunicação os separam. 

 
Em casa tudo parece tão perfeito, mas agora que estamos longe, sozinhos…

A câmera de Rossellini permanece paciente ao longo de todo o filme, permitindo que os personagens se desenvolvam, valorizando assim cada gesto e cada pequeno acontecimento. Grande parte do filme foi feito a partir da improvisação. Dessa forma, Rossellini alcança um nível incrível de naturalismo no  filme. É importante salientar que Roberto Rossellini é um dos maiores ícones do neorrealismo italiano, movimento que se caracterizou por focalizar as dificuldades econômicas da Europa do pós-guerra, a pobreza, o conflito de classes, o quotidiano opressor das camadas mais pobres e a injustiça. O tema de Viagem à Itália se distancia, portanto, do neorrealismo italiano. No entanto, o que há de mais real que um casal que se descobre em crise? Sem dúvida, esse filme marca uma evolução na filmografia do diretor, que se afasta do neorrealismo estrito em direção a um cinema “moderno” e mais intimista e, por essa razão, Viagem a Itália é considerado um filme pioneiro. Há um pouco do filme de Rossellini em O Desprezo, de Godard, por exemplo, que também conta a história de um casal em crise. Não é por acaso que no filme do diretor francês aparecem pôsteres de Viagem à Itália no cenário. Trata-se de uma homenagem e uma citação explícita. 

Viagem à Itália é protagonizado pelo inglês George Sanders e pela sueca Ingrid Bergman, com quem o diretor era casado na época. Os personagens se revelam, a princípio, bastante antipáticos. Sanders interpreta como ninguém o tipo arrogante, sarcástico e frio, algo que ele fez diversas vezes em sua carreira. Bergman é o coração do filme, uma vez que ela demonstra, com bastante sensibilidade, a instabilidade de sua personagem e a evolução de seus sentimentos. À medida que o filme avança, o espectador passa a se identificar com esses indivíduos extremamente humanos e falhos. 

Rossellini nos legou grandes obras-primas como Roma, Cidade Aberta (1945), Paisá (1946), Alemanha, Ano Zero (1947) e Stromboli (1950). Ainda que Viagem à Itália não seja o filme mais famoso do diretor, ele ocupa um lugar bastante especial na sua filmografia, sendo um dos filmes mais influentes de sua carreira.

Copyright Cinema em Cena 2012LEONARDO ALEXANDER é crítico de cinema, criador e mantenedor do blog Clube do Filme, estudioso de Literatura e Cinema na Université Paris Diderot (França) e apaixonado pelo cinema clássico hollywoodiano. Na coluna Cinemateca, ele analisa obras, diretores e gêneros, além de dar curiosidades e informações sobre os grandes clássicos do cinema mundial.
--
OUTRAS EDIÇÕES DA COLUNA

Sobre o autor:

PUBLICIDADE
PUBLICIDADE

Você também pode gostar de...

Cinemateca
O COZINHEIRO, O LADRÃO, SUA MULHER E O AMANTE
Cinemateca
CONTOS DA LUA VAGA [depois da chuva]
Cinemateca
BONEQUINHA DE LUXO