Camille: Você gosta do meu rosto? Da minha boca? Dos meus olhos? Do meu nariz? Das minhas orelhas?
Paul: Sim, de tudo.
Camille: Então você me ama totalmente.
Paul: Te amo totalmente, ternamente, tragicamente…
Prokosch: O que você pensa de mim? Camille: Entre no seu Alfa, Romeu! Veremos isso depois!
Em 1960, Jean-Luc Godard fez tremer as bases da sétima arte com sua mais célebre obra-prima, O Acossado. O rebelde do cinema francês, grande expoente da nouvelle vague, lançou três anos depois O Desprezo, seu sexto longa-metragem de ficção, que foi realizado com um grande orçamento (algo incomum para os filmes do diretor) e filmado em CinemaScope. Baseado no romance Il Disprezzo, do escritor italiano Alberto Moravia, o filme é protagonizado por Brigitte Bardot, uma das maiores estrelas do cinema mundial nos anos 60, cuja beleza fazia fremir corações do mundo inteiro. O filme ainda conta com o excelente ator francês Michel Picolli e o inconfundível Jack Palance, galã americano de westerns e premiado com Oscar em 1991. Um dos maiores luxos a que se dá Godard é o de escalar Fritz Lang, brilhante cineasta de origem austríaca, para interpretar a si mesmo no filme. Com tantos bons ingredientes, a receita só poderia dar certo!
Camille: É isso. Não te amo mais. Não há nada que explicar. Não te amo mais.
Sabe-se, no entanto, que o controle criativo não esteve totalmente nas mãos de Godard e que os produtores americanos exigiram a inclusão de cenas de nudez de Bardot para garantir o sucesso de bilheteria do filme nos Estados Unidos. Segundo Raoul Coutard, diretor de fotografia de O Desprezo, após enviarem a cópia já finalizada do filme ao produtor Sam Levine, a resposta foi: “Não, não, não, não está bom, eu quero ver a bunda de Bardot.” Diversos planos fetichistas mostrando os atributos da atriz foram então incluídos para atenderem a ânsia voyerista do produtor e do público masculino em geral. Godard e Alain Levent (substituto de Coutard, que já estava em outro projeto) conseguiram incluir tais planos de uma maneira orgânica e instigante. O sex symbol Bardot alcançara fama internacional com o clássico E Deus Criou a Mulher (1956), dirigido por Roger Vadin, seu marido na época.
Ícone absoluto da moda nos anos 60, alvo da adoração da imprensa e do público (a “Bardot mania”), celebridade preferida dos paparazzis, Brigitte Bardot (ou BB, como era também conhecida) era considerada uma das mulheres mais livres e fascinantes do mundo. Tendo encerrado sua carreira prematuramente, aos 40 anos, a atriz/cantora/modelo ganhou destaque posteriormente pelo seu ativismo na defesa dos animais. Infelizmente, após sua aposentadoria, sua imagem foi manchada por condutas racistas e homofóbicas, o que a fez responder a alguns processos e ganhar a antipatia de muitos franceses. Alguns críticos, como o francês Jean-Louis Bory, acreditam que a performance da atriz em O Desprezo corresponde ao ápice da sua carreira.
Paul: Não te cai bem falar palavrões. Camille: Ah é? Não me cai bem? Então escuta: Trou du cul, putain, merde, nom de Dieu, piège à cons, saloperie, bordel. E aí? Ainda acha que não combina comigo?
Em O Desprezo, Paul (Michel Piccoli) é um escritor contratado pelo produtor Jerry Prokosch (Jack Palance) para aprimorar e terminar o roteiro de um filme que está sendo dirigido por Fritz Lang (o próprio) na Itália. Trata-se da adaptação da Odisséia, de Homero. Quando Prokosch é apresentado à bela Camille (Brigitte Bardot), esposa do roteirista, ele convida o casal para ir a sua mansão, mas sugere que Camille vá no seu carro e que Paul vá de táxi. Apesar de Camille querer acompanhar o marido, este insiste que ela vá com o produtor. A partir de então, o casamento de Camille e Paul começa a desmoronar e o relacionamento dos dois personagens se degrada progressivamente. A parte central do filme, que focaliza a discussão do casal durante mais de 30 minutos, culmina com Camille revelando todo seu desprezo pelo marido. Segundo Godard, o filme é “a história de náufragos do mundo ocidental que um dia chegaram a uma misteriosa ilha, cujo mistério é a inexorável falta de mistério”.
Paul: Depois do jantar, veremos um filme. Isso me dará ideias. Camille: Use suas próprias ideias ao invés de roubá-las dos outros.
Existe uma dimensão metalinguística explícita em O Desprezo. Na sequência de abertura do filme, os créditos são falados por um narrador off, enquanto uma câmera avança sobre os trilhos para, no final, se virar atrevidamente para o público. O Desprezo mostra paralelamente um filme em construção e um casamento em destruição. Definir esse clássico é, no entanto, uma tarefa complicada: trata-se de um filme sobre um filme? Um filme sobre o fim de um relacionamento? Um filme sobre o cinema? Um filme sobre a arte em geral? Trata-se uma sátira sobre a produção cinematográfica? O Desprezo é provavelmente tudo isso e mais um pouco.
Godard não somente exibe os bastidores de um filme, como ele brinca com as convenções cinematográficas e, por vezes, as subverte. Podemos constatar esse temperamento audacioso e experimental do cineasta na já citada sequência de abertura, mas também na célebre cena dos amantes na cama, em que ele utiliza o filtro vermelho, branco e azul (cores preponderantes em todo filme) mudando sucessivamente a cor da imagem. Podemos citar também um dos diálogos mais importantes do filme em que Camille revela já não amar Paul. Nessa cena, o diretor opta por movimentos panorâmicos laterais da câmera ao invés de utilizar o convencional campo-contracampo.
Camille: Te desprezo. Isso é na verdade o que sinto por você. Por isso não te amo mais. Te desprezo. E sinto repugnância quando me toca.
A habilidade e engenhosidadede Godard podem ser constatadas no brilhante uso das cores, principalmente do vermelho, branco, azul e amarelo, e no uso do espaço. Toda a discussão de Camille e Paul no apartamento é brilhantemente coreografada em termos de utilização do cenário e de movimentação dos personagens. É nesse labirinto fechado de cômodos que se dará a degradação do relacionamento. O apartamento é extremamente importante na trama. Ele é o símbolo do casamento. Não é por acaso que o fim da relação parece coincidir com a saída de Camille do apartamento após a discussão. É já do lado de fora que a personagem pronuncia sua declaração de desprezo para o marido.
Não é somente o preciosismo de Godard que impressiona, mas também o maravilhoso roteiro escrito por ele. Muitos dos diálogos são antológicos, extremamente afiados. É impressionante também a quantidade de referências que faz o cineasta a grandes nomes da arte, esbanjando uma enorme erudição. Godard cita Dante, Bertold Brecht, Corneille, André Bazin e, é claro, Homero, para dizer só alguns. Através de seus personagens, Godard exprime discursos filosóficos, existencialistas e também discursos sobre o cinema. E o que falar da presença iluminada de Fritz Lang, que encarna praticamente a figura do sábio no filme? É igualmente genial o fato de que a fatalidade e o destino, fundamentais na epopeia de Homero, se reflitam no desfecho da trama do casal. De certa forma, O Desprezo é uma coleção de saberes, de citações e de referências eruditas.
É igualmente interessante apontar que quatro idiomas são falados no filme (o francês, o inglês, o alemão e o italiano), o que faz do mesmo uma verdadeira Torre de Babel. É interessante que Godard ponha à prova a comunicação dos personagens através dessa multiplicidade de idiomas, já que no relacionamento o não-dito e a dificuldade de se expressar são também desafios para a comunicação do casal.
Instigante, inteligente, desafiador, O Desprezo é certamente uma das maiores obras-primas produzidas pela nouvelle vague e pelo ousado Jean-Luc Godard!
Paul: Eu gosto muito de CinemaScope. Fritz Lang: Oh, isso não foi feito para pessoas, só para serpentes e funerais.
LEONARDO ALEXANDER é crítico de cinema, criador e mantenedor do blog Clube do Filme, estudioso de Literatura e Cinema na Université Paris Diderot (França) e apaixonado pelo cinema clássico hollywoodiano. Na coluna Cinemateca, ele analisa obras, diretores e gêneros, além de dar curiosidades e informações sobre os grandes clássicos do cinema mundial.
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