“Tantas coisas aconteceram. Finalmente você se tornou o homem pelo qual eu esperava. Mas ai de mim… eu não estou mais entre os vivos. Acho que esse é o caminho do mundo.”
“Esse seu amor é proibido. Você não ama sua esposa e filho? Você abriria mão da sua vida e os abandonaria também?”
Kenji Mizoguchi foi um dos primeiros grandes mestres do cinema japonês. Ele nasceu em Tóquio, em 1898. A infância e a adolescência do diretor foram marcadas por grandes dificuldades financeiras e traumas. Seu pai, carpinteiro de profissão, chegou a vender guarda-chuvas para os militares durante a guerra russo-japonesa. Aos 13 anos, Mizoguchi teve que abandonar a escola e virar aprendiz de farmacêutico no interior. Ele voltou para casa um ano depois, sofrendo de artrite degenerativa, doença que afetou sua maneira de andar pelo resto da vida.
Um dos acontecimentos que mais marcaram o jovem Mizoguchi foi a venda de sua irmã mais velha para uma casa de gueixas, quando esta era ainda adolescente. Foi essa mesma irmã quem cuidou dele e do irmão mais novo após a morte da mãe. Aos 18 anos, Mizoguchi começou a se interessar por diferentes manifestações artísticas: ópera, teatro e pintura. Antes de dirigir seu primeiro filme em 1923, ele trabalhou como designer publicitário em um jornal, como ator e como assistente de direção.
“Este mundo é uma residência temporária, onde vamos chorar até que a madrugada venha coberta pelas ondas.”
Mizoguchi dirigiu mais de 90 filmes ao longo de seus 33 anos de carreira. Entre as décadas de 20 e 30, ele chegou a dirigir mais de um filme por mês. No entanto, o diretor declarou que foi a maturidade dos quarenta anos que o fez realmente distinguir quais verdades humanas ele queria expressar em suas obras. Mizoguchi deu especial atenção, em seus filmes, ao papel da mulher na sociedade japonesa e, por essa razão, ele é considerado um diretor feminista. Muitas das heroínas dos filmes do cineasta são mulheres marginalizadas e sofredoras, como gueixas e donas de casa infelizes. Alguns biógrafos apontam que esse interesse em retratar a condição da mulher no Japão está relacionado às dificuldades e aos sofrimentos pelos quais passaram a mãe e irmã do diretor.
O cineasta deixou uma extensa filmografia, ainda que muitos de seus primeiros filmes tenham se perdido. Mizoguchi morreu aos 58 anos, vítima de uma leucemia. A influência do diretor cruzou fronteiras e ele adquiriu em vida grande reconhecimento dentro e fora do Japão. Ele ganhou dois prêmios no Festival de Veneza e chegou a ser indicado à Palma de Ouro em Cannes. Seu estilo influenciou grandes diretores e ele era tido como referência pelos cineastas da Nouvelle Vague francesa. Jacques Rivette e Jean-Luc Godard, por exemplo, eram grandes fãs do diretor japonês. Dentre os filmes mais célebres do cineasta estão: As Irmãs de Gion (1936), Crisântemos Tardios (1939), O Intendente Sancho (1954), Olharu – A Vida de uma Cortesã (1952) e Os Amantes Crucificados (1954). O filme Contos da Lua Vaga (1953) é geralmente apontado como a sua maior obra-prima.
“Você não poderá retornar. Venha comigo para minha terra natal.”
Contos da Lua Vaga (ou Contos da Lua Vaga Depois da Chuva, tradução aproximativa de Ugetsu Monogatari) é a adaptação de duas histórias presentesUgetsu Monogatari) é a adaptação de duas histórias presentes no livro de mesmo nome, escrito por Ueda Akinari, autor japonês do século 18. Uma das intrigas do filme, no entanto, é inspirada no conto Décoré! (1883) de Guy de Maupassant, escritor francês. O filme se passa no século 16, em meio às guerras civis japonesas. Genjurô vive com a esposa Miyagi e seu filho pequeno à beira do lago Biwa, na província de Omi. Ele faz potes de cerâmica para vender na cidade grande. Com esperança de ficar rico, ele decide iniciar uma grande produção de potes. Nessa empreitada, Genjurô conta com a ajuda de Tobei, seu vizinho e irmão, um homem obcecado pela ideia de virar samurai.
Após o ataque de soldados ao vilarejo onde moram, Genjurô e sua família, assim como Tobei e sua esposa Ohama, resolvem partir com as mercadorias para outra cidade. Temendo a ação de piratas, Genjurô decide deixar sua mulher e filho para trás, acreditando que eles estarão mais seguros. Ele promete voltar em breve para buscá-los. No entanto, chegando à cidade, Genjurô acaba por conhecer uma elegante e misteriosa mulher, Lady Wasaka, que o faz esquecer sua família. Enquanto isso, Tobei faz de tudo para virar um samurai, deixando também de lado sua mulher. Abandonada, Ohama é estuprada por um grupo de soldados e, depois, é obrigada a se prostituir para sobreviver. Ao longo do filme, acompanhamos o destino dos quatro personagens principais. Será que Genjurô e Tobei reencontrarão suas esposas?
“Eu não morri. Eu estou ao seu lado. Seus delírios chegaram ao fim. Você é novamente seu verdadeiro ‘eu’ no lugar onde pertence. Seu trabalho está esperando…”
A popularidade de Contos da Lua Vaga no ocidente foi impressionante na época de seu lançamento e nos anos que se seguiram. O filme contribuiu enormemente para aumentar o interesse do público ocidental pelo cinema japonês. Tudo indica que o clássico de Mizoguchi tenha feito mais sucesso internacionalmente que dentro do Japão. Vários críticos e cineastas louvaram a direção do filme e ele é tido, ainda hoje, como uma das maiores joias do cinema japonês. O filme é, de fato, primoroso em inúmeros aspectos. A cena inicial e a cena final do longa-metragem são, por exemplo, belas rimas visuais. Contos da Lua Vaga começa e termina com a imagem do vilarejo, que nos é revelado através do mesmo tipo de movimento de câmera.
Outras sequências são inesquecíveis. Uma das mais famosas é aquela em que os personagens principais viajam de barco pelo lago Biwa, em meio à névoa. A belíssima fotografia e o canto mórbido de Ohama fazem com que essa cena ganhe contornos oníricos e inquietantes. A direção de Mizoguchi continua a nos impressionar ao longo do filme. É admirável, por exemplo, a maneira com que ele representa o estupro. Ao invés de mostrar o acontecimento em si, ele focaliza alguns elementos laterais, como os sapatos da personagem jogados na areia, do lado de fora da casa. Essa é uma maneira de representar indiretamente o horror que ocorre entre quatro paredes.
O diretor explora brilhantemente o jogo de luz e sombras para representar o universo de Lady Wasaka. É interessante observar como a iluminação participa da construção da personagem. Na maioria das vezes, ela tem uma brancura fantasmagórica. Em outros momentos, ela parece se misturar à escuridão e mesmo flutuar. Todo envolvimento de Genjurô e Lady Wasaka é, por sinal, tratado com uma sensibilidade impressionante. A perda de referência temporal e a impressão de um universo paralelo são resultado das escolhas formais do diretor. O preciosismo de Mizoguchi dá ao fantástico e ao sobrenatural uma dimensão estética impressionante.
Em Contos da Lua Vaga, Mizoguchi combina magistralmente realismo social e o sobrenatural. No filme, Miyagi e Ohama são vítimas da ambição e da imprudência de seus maridos. Ainda assim, são as personagens mais fortes. Se Mizoguchi explora o fantástico através da figura de Lady Wasaka, ele faz prova de um realismo impiedoso, tanto na cena em que Ohama tenta se defender dos soldados, quanto naquela em que Miyagi tenta proteger sozinha seu filho pequeno e impedir o roubo de seu último alimento.
O desfecho de Contos da Lua Vaga é de um lirismo inigualável: uma emocionante reflexão sobre a morte e sobre a pós-morte. A obra-prima de Mizoguchi é uma aula de cinema.
LEONARDO ALEXANDER é crítico de cinema, criador e mantenedor do blog Clube do Filme, estudioso de Literatura e Cinema na Université Paris Diderot (França) e apaixonado pelo cinema clássico hollywoodiano. Na coluna Cinemateca, ele analisa obras, diretores e gêneros, além de dar curiosidades e informações sobre os grandes clássicos do cinema mundial.
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