Depois de um não tão breve hiato, o Frame Sonoro está de volta e, espero, sem mais intervalos tão longos.
E nesse retorno, um trabalho digamos... "Difícil" de analisar. Não pela obra em si, mas porque:
- é um filme "velhinho", de 1997
- de um diretor japonês pouco conhecido por aqui, a não ser pelos cineclubes e por cinéfilos de carteirinha da sétima arte made in Japan
- não foi lançado comercialmente no Brasil. Aliás, nem este e nenhum outro título deste cineasta.
E, como consequência de tudo isso, infelizmente poucas pessoas devem tê-lo assistido.
Mas fazer o que, né? Nem só de blockbusters ou cinema europeu vive a nossa coluna.
O filme que vamos analisar tem o título de Cure (em inglês mesmo) e foi escrito e dirigido por Kiyoshi Kurosawa (sem parentesco com o consagrado Akira Kurosawa).
É um trabalho de gênero, no caso terror, e foi vendido ao mercado norte-americano como um "filme de serial killer". Mas é muito mais profundo, perturbador e instigante do que podem sugerir todos esses rótulos.
Kurosawa submete o espectador, através de doses milimetricamente planejadas, a um mundo onde os tons de cinza são indistintos, complexos e permeiam, como uma gigantesca teia de aranha, aquilo que convencionamos chamar de realidade. Sua obra consegue a proeza de evocar temores profundos e instigar interessantes reflexões ao mesmo tempo.
E uma de suas características como cineasta é o uso, às vezes exagerado, às vezes sutil, mas sempre presente e com um conceito bem definido de uma bem delineada paleta sonora. E é isto que vamos analisar daqui em diante.
É uma recomendação óbvia, mas sempre é bom reforçar: se tiver oportunidade, assista a Cure antes de prosseguir com o texto. Depois não diga que eu não avisei.
- A primeira vez em que somos apresentados ao misterioso personagem Kunio Mamiya, ele está perambulando sozinho pela praia de Shirasato e o som das ondas distantes quebrando na orla chama muito a atenção: é um som grave, distorcido, "pesado" e completamente não-natural. E essa atmosfera irreal já deixa clara a intenção do diretor. É uma espécie de aviso: tem alguma coisa errada com esse sujeito. No desenvolvimento da história, vamos perceber o quão original e criativa foi esta maneira escolhida de nos apresentar esse intrigante personagem.
- Quando o protagonista, o detetive Kenichi Takabe, chega pela primeira vez ao seu apartamento, causa muito estranhamento um som mecânico contínuo e incômodo que praticamente toma conta do lugar. É como se fosse uma presença sinistra a pairar no local. Logo, o público descobre que é uma secadora de roupas funcionando completamente... Vazia! É um outro momento de apresentação de personagem, no caso a esposa de Takabe, Fumie. Essa situação vai se repetir mais duas vezes durante o filme e sempre causando um efeito diferente.
- Um dos pontos altos desse trabalho é a criação de atmosferas sinistras e perturbadoras. E é claro, o som contribui demais para isso. Temos um ótimo exemplo na cena em que Mamiya está na delegacia de polícia. A sua presença é acompanhada de um eerie (som soturno, grave e inquietante) que se acentua, por exemplo, quando ele acende o isqueiro para "hipnotizar" o policial Oida. Mas aqui abro parênteses: na minha leitura, Mamiya na verdade não hipnotiza ninguém nem é culpado dos crimes que ocorrem. Ele se utiliza de recursos, digamos, metafísicos para "liberar" a mente das pessoas de amarras e convenções sociais, e elas poderem realizar e satisfazer os seus desejos mais obscuros e profundos. Libertar o seu verdadeiro "eu" sem julgamentos do que é certo ou errado, permitido ou proibido, aceito ou não. Mas divago.... Estamos aqui para falar de som, não é?
- Na cena em que a Dra. Akiko Miyajima realiza uma rápida consulta em Mamiya, este se utiliza da água para "hipnotizar" (como citei anteriormente, não concordo que o personagem faça isso, mas vou continuar a empregar esse termo na falta de um melhor) a médica. Durante todo esse processo, é notável perceber como todos os sons diegéticos desaparecem, só retornando quando Mamiya joga água no rosto da médica, trazendo-a de volta à realidade.
- Em uma cena um pouco mais para frente, somos surpreendidos quando a mesma Dra. Miyajima está retalhando um homem em um banheiro público, em plena luz do dia. E qual o som que acompanha toda a cena? Isso mesmo: água! O mesmo elemento que Mamiya utilizou para hipnotizar a médica. No caso, a fonte sonora provém de uma pia transbordando.
- Agora uma prova da genialidade de Kiyoshi Kurosawa enquanto cineasta. O detetive Takabe tem uma perturbadora visão ao entrar no seu apartamento e encontrar sua esposa enforcada no meio da cozinha. Na sequência, descobrimos ser uma alucinação/sonho e é simplesmente chocante (por não achar palavra melhor) o modo como o diretor coloca um barulhento liquidificador em cena, no exato momento em que o protagonista desperta, tendo à sua frente uma assustada Sra. Takabe tentando entender o que está acontecendo. O diretor, de uma forma bastante criativa, lida com uma sequência que teria tudo pra cair em uma vala comum, de tão clichê, de tantas vezes que já assistimos a esse tipo de situação.
- Quando Takabe encontra Mamiya no hospital, é digna de nota a atmosfera criada pela combinação dos trabalhos de Direção de Arte, Fotografia e Desenho de Som. Em relação a esse último, Alan Splet, o renomado e falecido editor de som que ficou famoso pelas ambiências soturnas e tenebrosas criadas em filmes como Eraserhead e O Homem Elefante (ambos de David Lynch), teria ficado orgulhoso caso tivesse ouvido seu legado vindo diretamente da terra do sol nascente.
- Um exemplo der uso bastante criativo do som subjetivo dos personagens ocorre na cena em que Mamiya é colocado dentro de uma sala repleta de delegados e oficiais de polícia. Em determinado momento, eles, os policiais, começam uma acalorada discussão. Enquanto isso, Mamiya e Takabe, sentados lado a lado, iniciam um sussurrado diálogo. Pelo olhar de Takabe vemos que a discussão entre os oficiais e delegados está intensa, mas o público ouve só, e somente só, o diálogo entre o detetive e Mamiya. Nem a ambiência do lugar é ouvida. Essa subjetividade é quebrada assim que Takabe empurra violentamente a cadeira de Mamiya.
- No encontro final e trágico entre o detetive e o misterioso personagem de Mamiya dentro de um grande e velho galpão abandonado, eles estão o tempo todo acompanhados pelo som de um vento frio e cortante. Esse som é curiosamente exagerado e um tanto quanto dramático demais. Depois que Takabe mata Mamiya (eu falei pra ver o filme antes...), o som do vento cessa de forma abrupta, mesmo enquanto vemos as cortinas perto das janelas balançando continuamente.
- Notável também é a breve cena em que Takabe aciona um velho fonógrafo de Edison. Arrepiante e muito criativa a combinação de vozes indistintas cheia de efeitos e o antiquíssimo mecanismo acionado à manivela.
- E é de se aplaudir de pé que todo o clima desse trabalho seja sustentado pela sua atmosfera sonora, sem o recurso "fácil" da música extra-diegética (mais conhecida como "trilha sonora"). O filme inteiro possui somente três temas musicais, bem pontuais e que marcam a estreia do compositor Gary Ashiya no cinema.
Cure é dessas obras que extrapolam gêneros específicos ou rótulos simplistas e mercadológicos. É construído artesanalmente, com um grande apuro estético e inteligência.
Kiyoshi Kurosawa deveria ser "descoberto" no Brasil. Mais do que isso, deveria ser debatido, resenhado, discutido e, principalmente, assistido.
Observações:
- o filme foi lançado somente na versão em estéreo. Mas isso não diminui em nada o seu valor. Muito pelo contrário, só vem provar que não importa muito o formato que uma mixagem é lançada. O importante é a forma com que o som foi concebido e construído, e como faz uso dos recursos existentes para ajudar na criação de um filme. Mas fico curioso em saber como seria ouvir esta obra-prima em uma mixagem aproveitando diversos canais de áudio simultâneos e com o uso dos graves em um canal específico de baixa frequência.
- queria agradecer ao Cauby Monteiro por ter me apresentado a esse filme fantástico durante uma sessão no Grupo de Estudos de Cinema de Horror do qual faço parte da turma deste ano. E ao Demian Garcia pela criação e coordenação deste grupo na Faculdade de Artes do Paraná - FAP.
PAULO DE TARSO é editor de áudio e mixador. Trabalhou no departamento de som dos longas Ensaio Sobre a Cegueira e Era Uma Vez. Dono do estúdio Lux Sonora - Pós-Produção de Som para Cinema e Publicidade, em Curitiba.
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