"...na próxima década, o meio televisivo, particularmente as séries dramáticas, deve tornar-se um lugar privilegiado para a arte autoral."
- Brett Martin, jornalista e autor do livro Difficult Men: Behind the Scenes of a Creative Revolution
Quando se fala em pós-produção de som para televisão, existe uma linha de pensamento que estabelece que, para produtos voltados a esse meio, o desenho sonoro pode ser um tanto quanto... Hmmm... "diferente" se comparado às produções voltadas para o cinema.
Em linhas gerais, essas diferenças seriam:
- diálogos sempre em primeiríssimo plano
- os chamados hard-effects (explosões, tiros, colisões, pancadas) sempre se sobressaindo, quando existentes
- foley não tão detalhado e/ou trabalhado
- e música. Muuuuita música!
Segundo essa linha, o espectador de TV pode ser facilmente distraído por inúmeros elementos a sua volta (telefone, cozinha, vizinhança, banheiro, conversas etc.) ao contrário do que ocorre em uma sala de exibição e seu ambiente isolador. Por isso, vale tudo para tentar mantê-lo atento ao que está sendo exibido na telinha.
Claro que não são regras estabelecidas e não existem "receitas de bolos" prontas. Além do que, essas produções são diretamente afetadas por diversos outros elementos como, por exemplo, prazo e orçamento.
Em relação às séries de TV norte-americanas, é notório que existe um padrão mínimo de qualidade na sua pós-produção de som. Obviamente existem muitas diferenças nos formatos, propostas e estilos e, consequentemente, em sua qualidade sonora. Grosso modo, poderíamos separar as séries de ficção em dois grandes grupos: as chamadas sitcoms (alguns exemplos: Friends, The Big Bang Theory, Two and Half Men) e outros com uma estética mais próxima da cinematográfica (The Fall, Mad Men, Homeland, The Killing).
A grande verdade é que algumas dessas produções criadas para a TV se aproximam bastante (se é que não superam) muitas produções voltadas para o cinema, não só em se tratando de linguagem, mas também nos aspectos técnicos e criativos. Há muito tempo que a TV deixou de ser a "prima pobre" nessa área.
Breaking Bad, série televisiva da AMC, é quase uma unanimidade entre críticos e público como um dos produtos mais interessantes surgidos nos últimos anos. Tanto que já foi indicada e agraciada com mais de uma centena de premiações. Inclusive na área de som.
E em se tratando de televisão, (ainda) são raros os casos em que o som é utilizado de forma narrativa, em um contexto mais amplo, sendo os pontos altos nessas produções a criatividade e o detalhismo sonoros. E Breaking Bad não é exceção. Mas aos poucos esse cenário está mudando...
Vamos fazer uma rápida análise do episódio intitulado Dead Freight, da quinta temporada, que teve indicações no Emmy 2013 nas categorias Melhor Edição de Som e Melhor Mixagem, mas acabou perdendo para o episódio The Milkmaid's Lot da série Boardwalk Empire, da HBO.
Eu realmente não sei os critérios adotados para indicações e premiações de episódios específicos, porque, no geral, o trabalho de pós-produção de som de Breaking Bad é coeso, coerente e de altíssima qualidade por durante todas as suas cinco temporadas, graças ao talento e à experiência de Nick Forshager, que assinou a supervisão sonora desde o piloto até o derradeiro episódio.
A história inicia com um personagem pilotando uma motocicleta em pleno deserto. São diversos planos se alternando rapidamente, numa sucessão de tomadas abertas, fechadas e POVs (pontos de vista). O que chama a atenção aqui são as riquezas dos detalhes sonoros: o motor, as trocas de marchas, os solavancos no terreno arenoso, a vegetação raspando as rodas. Além da mixagem que brilhantemente soube aproveitar todos esses elementos nos cinco canais de áudio disponíveis.
Ao final da sequência, o jovem motociclista, parado no meio do deserto, ouve a buzina distante de uma locomotiva. Uma questão interessante aqui é que somente no final do episódio esse som terá um significado, porque só então entenderemos o que está acontecendo e quais as consequências do rapaz ter ouvido aquela buzina.
Avançando um pouco mais, temos uma cena em que Walter Jr. sai da casa dos seus pais depois de uma breve discussão. Aqui temos mais um exemplo de cuidado no desenho de som que muitas vezes inexiste nas produções ditas cinematográficas. Toda a movimentação do personagem, desde ele fechando a porta, caminhando para fora da casa, abrindo a porta do carro, ligando-o e partindo é ouvida off screen. Poderíamos ainda acrescentar o preciosismo do detalhe, na mesma cena, do relógio na sala de estar tiquetaqueando de forma constante no canal surround esquerdo.
Já na sequência do assalto ao vagão, o que impressiona é a qualidade do foley (contrariando a "regra" citada no início do texto). Toda a manipulação pelos personagens das ferragens, mangueiras, parafusos, ferramentas etc. é rica, detalhada e de muito bom gosto. Mas, como citei anteriormente, não é algo exclusivo desse episódio. Durante toda a série o nível de qualidade se mantém.
Mas curiosamente aqui o som pode ter sido reponsável por um detalhe que, se não chega a ser um furo de roteiro, pode ter aberto brecha para um descuido considerável. Explico: após retirar a carga de metilamina, a ideia do grupo é injetar água no vagão para não despertar suspeitas. E para isso eles usam uma bomba mecânica de água. A questão é: será que os dois tripulantes da locomotiva não ouviriam a bomba acionada por Walter? Afinal, eles estavam fora da locomotiva, ao ar livre, tentando ajudar o "caminhoneiro" em dificuldades e uma bomba daquelas teria que ter um motor bastante potente... e barulhento!
Ao mesmo tempo é esse som da bomba de água que dá um toque dramático e crucial nos minutos finais. Quando Walter desliga a tal bomba, depois de concluído o serviço, os personagens são surpreendidos ao continuar a ouvir um som de motor. Daí notam a presença do jovem motociclista do início do episódio, observando os ladrões.
Também é válido destacar que, para esses minutos finais, Nick Forshager reservou uma ambiência que complementa todo o clima de tragédia que fecha o episódio: um vento frio, agudo e soturno.
Breaking Bad é um ótimo exemplo de como a produção audiovisual tem amadurecido rápida e qualitativamente, se igualando em termos técnicos e criativos às produções voltadas ao cinema. E que venham mais e mais exemplos! Quem tem a ganhar é o público em geral.
A TV morreu! Vida longa à TV! Ou como a jornalista Ana Maria Bahiana costuma frequentemente citar, "aquilo que um dia já foi conhecido como televisão".
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