Volta e meia comento aqui na coluna que é muito gratificante encontrar cenas ou trechos inteiros de filmes em que é perceptível que seu conceito sonoro foi concebido ainda na fase do roteiro, na gênese do projeto.
O que dizer então de um trabalho em que grande parte de sua narrativa não tem o som apenas como mero acessório técnico, mas como elemento intrínseco da história?
Precisamos Falar Sobre o Kevin, produção britânica de 2011 dirigida pela escocesa Lynne Ramsay, entraria facilmente em qualquer lista de "melhores filmes da década". Um verdadeiro achado, uma joia preciosa para quem o apreciar com os olhos e ouvidos bem abertos. Assim como Onde os Fracos Não Têm Vez, Apocalypse Now e A Conversação, é uma poderosa combinação de roteiro inteligente, elenco impressionante, direção criativa e... Um trabalho de som memorável.
O responsável por este último é Paul Davies, veterano das ilhas britânicas que assinou trabalhos de som de Um Homem Misterioso, A Rainha e mais outros 90 títulos.
Mas antes uma observação importante: dificilmente eu faço este tipo de recomendação, mas peço que o caro leitor assista antes (ou reassista) ao filme porque vou entrar em alguns detalhes bastante específicos.
E não vou me preocupar em relação a spoilers. Aliás, daqui em diante é só isso o que teremos: a maior quantidade de spoilers por metro quadrado de todo o Cinema em Cena.
Em frente, então:
- O filme é inteiro recortado por flashbacks e flashforwards e a diretora aproveita estes momentos para nos dar várias pistas visuais e sonoras que somente serão plenamente compreendidas no final. Um exemplo? O primeiro som que ouvimos ainda nos créditos iniciais é uma espécie de marca sonora do filme: o regador automático de grama. Este elemento vai aparecer em momentos chaves, mas a sua verdadeira natureza dramática será plenamente compreendida apenas quando o público descobrir o destino de Franklin (papel de John C. Reilly) e sua filhinha.
- Logo após os créditos, nós somos apresentados a uma espécie de guerra de tomates, uma festa tradicional que ocorre em Valência, Espanha, e da qual Eva, a protagonista (em um trabalho de interpretação inesquecível de Tilda Swinton), está participando. Enquanto assistimos às impressionantes imagens sanguinolentas em câmera lenta das centenas de corpos cobertos de tomates esmagados, o que é oferecido aos nossos ouvidos? Toda a sequência do massacre promovido por Kevin no ginásio de esportes. Desde a agitação inicial da torcida, as primeiras flechas sendo disparadas, as primeiras reações das vítimas, o desespero geral, gritos e correria. Só por estes momentos iniciais já dá para perceber a complexidade sonora com que este trabalho está nos brindando.
- Ainda nos minutos iniciais, merece destaque um exemplo rápido e simples de como o som está presente nos mínimos detalhes deste filme, às vezes quase imperceptíveis. No caso, uma transição sonora entre duas cenas (um flashback e uma no tempo presente): quando Celia, a filha caçula do casal Khatchadourian, está brincando com seu cachorro de pano vermelho na mesa da cozinha, a última batida do brinquedo na mesa é o mesmo som da bola de basquete do plano seguinte. Uma "cola" simples, eficiente e elegante que "gruda" duas cenas que se passam em momentos temporais bem distantes.
- Em um dos flashbacks, na primeira vez em que vemos Eva chegando ao ginásio de esportes logo após o massacre, temos uma profusão sonora admirável: os ruídos dos limpadores do para-brisa do carro que logo se transformam em batimentos cardíacos, o tamborilar das gotas de chuva, o estridente som da serra utilizada para cortar os cadeados instalados por Kevin e mais a música atonal de John Greenwood. Tudo muito bem detalhado e mixado e... Mas por que diabos um som de chuva se na noite do massacre não estava chovendo? A resposta vem na cena seguinte, quando Eva chega em casa e chove copiosamente. Em uma palavra? Genial! A mente de Eva misturando o seu momento presente dirigindo para casa com suas lembranças da terrível noite em camadas e mais camadas sonoras, embaralhando os dois eventos.
- Mais para frente, outro momento sublime: uma animação de células se reproduzindo, as primeiras imagens de Eva grávida, o casal comprando brinquedos e móveis para o bebê... E todas essas cenas tendo o quê como trilha sonora? Os sons de uma máquina fotocopiadora.
Tudo isso e ainda estamos com meros 15 minutos de filme.
- Em um dos flashforwards, temos um POV de Eva saindo da prisão (esse mesmo POV vai se repetir no final, fechando o filme) e a diretora nos brinda com uma belíssima metáfora audiovisual do nascimento de Kevin: temos em sequência os gritos de Eva durante o parto praticamente mixados com o choro estridente de Kevin recém-nascido.
- Aliás, falando em choro de bebê, temos pelo menos duas sequências de cenas com sons se sobrepondo envolvendo o choro de Kevin, uma lixadeira de parede, uma britadeira e o cortador de grama de um vizinho. Ainda mais notável é saber que estas cenas se passam em espaços de tempo bem distantes. Agora, impagável mesmo é o momento em que Eva fica ao lado de uma barulhenta britadeira de rua para "aliviar" os ouvidos da choradeira insistente do seu filho.
- Outro momento notável em que o som é utilizado de forma extremamente narrativa é quando Eva descobre que Mr. Snuff, o roedor de estimação de Celia, está morto e entupindo a pia da cozinha. O som da água tentando escoar pelo ralo é bastante enfatizado. Pela sequência inteligente de imagens e sons, o público não precisa ver o bicho morto para entender o que está acontecendo e quem foi o causador.
- Mais um exemplo? É quando a família está à mesa conversando sobre o acidente ocorrido com Celia. O problema foi que a menina perdeu um dos olhos. Em determinado momento, Kevin pega uma lichia e a descasca. Os closes da fruta e do personagem a degustando associados aos sons propositalmente exagerados tornam a cena toda bastante perturbadora.
- No clímax do filme, quando descobrimos que Kevin foi o autor do massacre no ginásio de esportes, a mixagem toda se concentra nos sons médios e graves (sirenes, flashes, vozerios) e com um efeito de reverberação bastante proeminente. E tudo isso associado às cores quentes, por vezes distorcidas das luzes, e mais os movimentos em slow motion dão um tom bastante surreal e onírico à cena. Conseguimos sentir exatamente o que Eva está vivenciando naquele momento.
Agora, surreal e genial é o exato momento em que Kevin surge na porta do ginásio: a colocação do som de uma plateia o ovacionando talvez seja o ponto alto do filme em termos de narrativa sonora. Ali temos de uma maneira extremamente simples, mas ao mesmo tempo bastante impactante, um vislumbre do que se passa na mente doentia do personagem.
- Na cena em que Eva chega em casa para descobrir que seu marido e filha foram assassinados, já é anunciado de alguma forma pelos sons ambientes quando ela entra em casa. É notório o excesso de reverberação utilizada na mixagem, enfatizando o vazio do lugar. Já seria uma espécie de prenúncio do que a protagonista encontraria no jardim com o já citado som do regador de grama servindo como uma espécie de trilha sonora macabra.
E além de todos esses momentos pontuais, nós poderíamos citar um cuidado praticamente artesanal na edição de diálogos: muito bem editados, com um áudio limpo e bem recortado, mesmo nos momentos sussurrados e nas dublagens.
E também a forma equilibrada que a mixagem explora os sons nos canais surrounds, utilizando este recurso de forma econômica, eficiente e elegante, ainda mais levando em conta o perfil do filme, que não possui cenas de ação com suas explosões, correrias, tiros e música tonitruante.
Mas o mais interessante é que muita coisa pode ainda ser descoberta, observada, detalhada e discutida neste Precisamos Falar Sobre o Kevin. E não só em termos de desenho de som.
É um filme que deveria ser estudado à exaustão em qualquer escola que se preze a ensinar Cinema. E ser visto, revisto e discutido por qualquer um que aprecie a dita Sétima Arte. Aliás, são obras como esta, com sua poderosa combinação de criatividade, talento e inteligência, que dão ao Cinema este merecido status.
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