"Quando o homem moderno, particularmente o habitante da cidade, deixa a luz natural do dia ou a luz artificial da noite e entra no cinema, opera-se em sua consciência uma mudança psicológica crucial. [...] Um dos principais aspectos desse ato corriqueiro, que chamaremos de situação cinema, é o isolamento mais completo possível do mundo exterior e de suas fontes de perturbação visual e auditiva.
O cinema ideal seria aquele onde não houvesse absolutamente nenhum ponto de luz (tais como letreiros luminosos de emergência e saída etc.) fora da própria tela e, fora a trilha sonora do filme, não pudessem penetrar nem mesmo os mínimos ruídos. A eliminação radical de todo e qualquer distúrbio visual e auditivo não relacionado com o filme justifica-se pelo fato de que apenas na completa escuridão pode-se obter os melhores resultados na exibição do filme."
Este trecho do livro Psychology of Film Experience, de Hugo Mauerhofer, parece ter sido escrito quase 60 anos antes especialmente para Onde os Fracos Não Têm Vez, trabalho escrito e dirigido pelos irmãos Ethan e Joel Coen, em 2007.
É um filme que funciona muito melhor em um ambiente silencioso e controlado, condições ideais para se mergulhar em sua proposta conceitual e estética.
Um dos seus elementos geradores de suspense e tensão é o quase silêncio absoluto, ou a mixagem que poderíamos chamar de delicada, minimalista, onde certas camadas sonoras são apenas sublimadas em vez de enfatizadas, como seria o usual em outros filmes.
Se por acaso você assistiu ao filme em uma sala de cinema barulhenta, com seus comedores de pipoca, seus conversadores incorrigíveis, ar condicionado desregulado e celulares emitindo seus simpáticos bipes... Sinto muito, amigo, mas você não apreciou nem metade da experiência.
Para se ter uma ideia do perfil do filme, ele tem no total 16 minutos de música composta, incluindo os créditos finais e a música cantada pelos mariachis. É uma decisão rara, levando em conta a quantidade média de música presente nos filmes atuais lançados pelos grandes estúdios. Se analisarmos que o tempo total de projeção ultrapassa as duas horas, o que sobra em termos de trilha sonora (*) são todos os outros elementos (foley, ambiências, efeitos, diálogos...) e fica na mão deles a responsabilidade de conduzir esta complexa e arrepiante mistura de western, road movie e terror. E acredite, eles não só cumprem o papel como elevam este trabalho a um outro patamar.
Skip Lievsay, veterano que assina a edição de som e mixagem, é velho colaborador dos irmãos Coen desde o seu primeiro longa, Gosto de Sangue, de 1984. Mas ele tem em seu currículo trabalhos com Robert Altman, Martin Scorsese, Terrence Malick, Tim Burton, Alfonso Cuarón, Ang Lee e muitos outros da chamada primeira linha de cineastas de Hollywood. Mas foi mesmo com os Coen que ele criou fama de ser um profissional extremamente criativo e inovador. Mas vamos ser sinceros: ele teve mesmo é sorte de poder trabalhar com os Coen que, como roteiristas e diretores, valorizam demais a utilização do som e sempre buscam explorar todas as suas possibilidades narrativas.
Mas retornemos a Onde os Fracos Não Têm Vez.
Já nos primeiros minutos somos apresentados a um cena bastante violenta: Anton Chigurh, o complexo personagem de Javier Bardem, estrangula um policial na delegacia utilizando as algemas. Somente os terríveis sons das botas dos dois personagens se debatendo no chão, o metal das algemas cortando o pescoço e mais o angustiante gorgolejar do policial já seriam suficientes para tornar a cena um espetáculo terrível de se ver, mas Skip Lievsay acrescenta um elemento que deixa tudo ainda mais perturbador: o som da passagem de um trem que acompanha toda a ação, desde o início até o a morte do policial. Algumas interpretações já foram feitas para o uso deste elemento sonoro: desde que este som do trem ajuda a acobertar toda a barulheira do estrangulamento (e tornar a cena mais verossímil) até outras estapafúrdias do tipo, "o trem que leva as almas dos mortos" (alguém se lembrou de Raul Seixas?).
Já mais adiante, quando o personagem Llewelyn Moss (Josh Brolin) está caçando no deserto, o grande destaque é a composição do ambiente. Camadas e mais camadas de diferentes sons de ventos. E um toque de mestre, porém bastante sutil: assim que Moss, à distância, encontra o local da chacina, esse som de vento muda, se torna mais grave, mais "pesado".
Avançando um pouco mais na história, vamos à cena quando Moss retorna ao local da chacina levando água para o mexicano sobrevivente. É noite e Moss é surpreendido por outros bandidos em uma caminhonete. Aqui é interessante destacar um detalhe sonoro que faz toda a diferença para a tensão exigida da cena: a respiração ofegante em primeiro plano de Moss.
E já na sequência seguinte, quando Moss, correndo a pé, é perseguido pela caminhonete dos bandidos, chama a atenção o volume do motor do veículo dos perseguidores. A maneira que este som foi mixado sugere, em algumas planos, que o personagem está sendo perseguido por um enorme e terrível animal selvagem. A sensação de ameaça é intensificada por causa desta opção. E, curiosamente, na sequência seguinte, Moss é perseguido por um cachorro enorme e enfurecido.
Já na clássica cena entre Chigurh e o dono do posto de gasolina, podemos destacar vários elementos sonoros:
- os diálogos possuem uma clareza e uma qualidade tímbrica invejável. Os personagens falam suave e moderadamente e o áudio é cristalino;
- com relação à mixagem 5.1, uma curiosidade: os lúgubres sons de ventos que acompanham todo o diálogo estão localizados em todos os canais, com exceção do canal central. É um som de vento frio, cortante, que reforça a aura de ameaça e morte iminente que paira sobre toda a cena;
- o score de Carter Burwell é uma textura monocórdica que vai surgindo sutilmente, compondo com os outros sons ambientes. Ela para abruptamente assim que é revelado o resultado do cara ou coroa.
Mais para a frente, na cena em que Chigurh pergunta à gerente da área de trailers onde Moss trabalha, ela se recusa a responder. Três vezes. Aquela mulher talvez não saiba, mas sua vida foi salva por um efeito sonoro. Chigurh só não dá cabo nela porque escuta o som próximo de uma descarga de banheiro. Se não fosse isso, sabe-se lá que o personagem de Javier Bardem teria feito à pobre mulher.
Mas a cereja do bolo é a sequência no quarto do Eagle Hotel, onde um fugitivo Llewelyn Moss se hospeda com a valise cheia de dinheiro. Vamos destrinchá-la:
- Assim que Moss descobre o aparelho transmissor escondido no meio do dinheiro, ele ouve sons no corredor;
- Ele pega o telefone e disca para portaria. Aqui temos um momento sublime da mixagem: ouvimos o telefone da portaria tocar, lá embaixo. Ninguém atende;
- Em seguida, ouvimos passos sorrateiros no corredor;
- Quando o bipe do receptor é ouvido do lado de fora do quarto, o público não tem mais dúvida: é Anton Chigurh que está ali fora. É possível também perceber o momento que ele desliga o aparelho;
- Em seguida, Chigurh avança pelo corredor e o ouvimos desatarraxando uma lâmpada. O corredor fica às escuras;
- De repente, a explosão sonora do miolo do trinco da porta voando pelo quarto.
Durante toda a cena, a câmera está sempre ao lado de Moss, nunca sai do quarto. Não temos nenhum score, nenhuma música, nenhum diálogo, somente sons diegéticos milimetricamente desenhados. E apenas com estes elementos, a tensão criada é quase insuportável. É um dos exemplos mais perfeitos de toda uma cena concebida desde o roteiro utilizando o som como importante elemento narrativo.
Em uma entrevista, Joel Coen comentou sobre esta cena. O entrevistador perguntou: "Esta parte não funciona se o público não estiver em silêncio, não é?" Joel respondeu: "Se até este momento o público não estiver em silêncio, é porque o filme inteiro não está funcionando."
E avançando até a cena final, no monólogo do Xerife Bell (Tommy Lee Jones) ouvimos um relógio tiquetaqueando insistentemente desde o início e que vai aumentando o volume de forma extremamente sutil até o início dos créditos finais. Esse relógio deixa margem a muitas interpretações, mas o que é interessante, sonoramente falando, é como seu som se funde à música dos créditos finais: a mesma cadência, o mesmo ritmo.
Outros elementos de destaque:
- O foley extremamente rico e bem concebido. Desde os passos dos personagens andando pelo deserto até os cliques e claques da manipulação das armas, o foley possui uma textura, uma riqueza tímbrica que merece ser alvo de estudos acadêmicos;
- na área de efeitos sonoros, só para ficar em um exemplo específico, o som do rifle com silenciador de Chigurh é uma referência de apuro, criatividade e precisão em termos de sound design. Temos aqui uma sonoridade fria, pesada, assustadora e perfeita em relação aos propósitos dramáticos. Só pelo som dá para perceber a letalidade da arma de Chigurh, apesar de sua natureza sonora ser completamente irreal.
Com seus longos trechos sem um único diálogo, uso mínimo de música e para ser uma experiência realmente completa (e inesquecível), Onde os Fracos Não Têm Vez é uma obra que deve ser degustada com todas as suas camadas, sutilezas, detalhes e nuanças em um ambiente silencioso e, poderíamos acrescentar, respeitoso por quem realmente aprecia a Sétima Arte.
Aliás, estas deveriam ser as condições em que todos os filmes deveriam ser assistidos, não é mesmo?
(*) aqui o termo "trilha sonora" é usado como foi originalmente concebido, ou seja, refere-se a TODOS os sons de um filme, INCLUSIVE sua música.
PAULO DE TARSO é editor de áudio e mixador. Trabalhou no departamento de som dos longas Ensaio Sobre a Cegueira e Era Uma Vez. Dono do estúdio Lux Sonora - Pós-Produção de Som para Cinema e Publicidade, em Curitiba.
Observação: as cenas do filme apresentadas nesta coluna têm caráter meramente ilustrativo. Recomendamos que você assista ao filme em DVD ou Blu-ray para perceber todos os detalhes do design de som mencionados na análise.
--
OUTRAS EDIÇÕES DA COLUNA