Assíduo leitor, imagine a cena: você com alguns amigos em um barzinho da moda, degustando umas geladas e o assunto de repente cai em Cinema. Inesperadamente, um dos presentes solta uma dessas: "Sabe o filme tal? Adorei a fotografia!" Você, orgulhoso ex-aluno dos cursos do Pablo Villaça, dá um gole rápido, se ajeita na cadeira e começa: "Como assim, 'adorei a fotografia'?"
(...todos param espantados, olhando para você...)
"Desculpe-me, mas isso não quer dizer absolutamente nada. A qual elemento fotográfico você está se referindo? Talvez tenha sido a movimentação da câmera que você achou criativa e interessante? Ou seria a escolha da paleta de cores, coerente com o desenvolver da narrativa?"
(...estranhamente alguns dos seus amigos começam a pedir a conta... Mas você, impávido, continua...)
"Ou estaria você se referindo ao apurado trabalho de tratamento de cores aplicado na pós-produção? Ou na utilização criativa e variada de lentes?"
(...algumas mesas ao seu redor começam a ficar subitamente vazias...)
"Talvez o nobre amigo esteja querendo chamar a atenção da utilização da luz para criação de texturas e sombras, criando uma maior dramaticidade a determinadas cenas, não seria isso? Por favor, poderia detalhar o que você quis dizer exatamente com 'fotografia' deste filme?"
Muito provavelmente o seu (ex-)amigo não vai poder responder porque já não vai estar mais presente. Aliás, se bem observar, você vai estar sozinho à mesa.
Pois se em uma outra ocasião, na mesma situação, alguém soltar a seguinte: "Sabe o filme tal? Adorei o som". Primeiro você vai se espantar: é raríssimo alguém que não seja do meio se referir ao som de um filme.
Segundo, você vai se empertigar todo e começar a salivar de contentamento pela oportunidade: "Como assim, 'adorei do som'? Desculpe-me, mas isso não quer dizer absolutamente nada. A qual elemento sonoro você está se referindo? Seria a edição dos diálogos que você achou limpa e com todos os elementos bem sincronizados? Ou estaria enfatizando a composição das ambiências, também conhecidas como backgrounds ou simplesmente BGs?"
(...seus amigos começam a esvaziar rapidamente os copos e a olhar para o lado... Mas você continua, resoluto...)
"Talvez você tenha apreciado a gravação e edição do foley ou, quem sabe, o uso dos efeitos sonoros que enriqueceram sobremaneira a narrativa."
(...por que tanta gente saindo do bar de repente?...)
"Ah, já sei! Você pode ter gostado muito da mixagem equilibrada e concisa. Será a isso que você se refere quando diz que 'adorou o som' do filme?"
(...provavelmente esta última frase ninguém vai ouvir porque o bar já vai estar completamente vazio. Ninguém é obrigado a ficar ouvindo seu pedantismo...)
Assim como na fotografia e no som (ou qualquer outro departamento), filmes podem se destacar em uma determinada, vamos chamar assim, área melhor que em outras (sim, alguns filmes se destacam por serem ruins em todas as áreas...).
Abaixo, eu preparei um pequena listagem despretensiosa de filmes sem nenhum critério de gênero, época, ano, realizador, país de origem ou preferência pessoal. Simplesmente os agrupei no que eu acredito serem suas áreas de destaque em relação à concepção sonora. Também é bom deixar claro que está longe de ser uma lista definitiva.
E, obviamente, faltaram muitos e muitos outros títulos, mas que podem ser complementados pelos assíduos leitores no espaço para comentários.
A principal utilidade da lista é para as pessoas conseguirem argumentar (e se livrarem de chatos igual a você).
Foley
- Uma Cilada Para Roger Rabbit (1988) - trabalho de referência. Um foley rico, detalhado, cartunesco e.... muito divertido!
- The House of the Devil (2009) - quem disse que filmes de baixo orçamento não podem ter um belíssimo trabalho de som? Neste, o foley é um dos destaques.
- O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001) - delicado, complexo e de muito bom gosto. Bem de acordo com a protagonista.
- Deixe Ela Entrar (2008) - que saber o que é um foley bem concebido e executado? Estude este filme.
- Mary & Max - Uma Amizade Diferente (2009) - foley de animações em stop motion não é pra qualquer um. Aqui temos um exemplo muito, mas muito acima da média.
- Ensaio Sobre a Cegueira (2008) - um filme sobre cegueira foi um prato cheio para a equipe brasileira abusar da criatividade. E, acredite, eles não desperdiçaram a oportunidade.
Ambiências
- O Homem Elefante (1980) - Os ambientes carregados e estilizados do falecido Alan Splet até hoje são referência.
- Os Outros (2001) - a utilização criativa e inovadora neste filme merece uma análise futura aqui na coluna.
- Seven - Os Sete Crimes Capitais (1995) - conseguiram aumentar ainda mais o clima já sufocante e pertubador.
- Trabalhar Cansa (2011) - trabalho impecável. Um dos destaques recentes da produção nacional.
- O Barco - Inferno no Mar (1981) - claustrofobia, medo e tensão em forma de ondas sonoras.
- Filhos da Esperança (2006) - genial em sua concepção e detalhamento. Ajuda a manter um clima opressivo e quase surreal na maior parte do tempo.
- Alien, o Oitavo Passageiro (1979) - o que seria da Nostromo sem sua ambiência complexa, angustiante e claustrofóbica?
- O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2007) - sutileza e suavidade contribuem enormemente para o clima e ritmo quase oníricos.
Diálogos
- Killer Joe - Matador de Aluguel (2011) - impressionam pela clareza e qualidade tímbrica.
- Sangue Negro (2007) - combinação de edição precisa mais interpretação visceral dos atores. Resultado? Uma obra-prima.
- Nacho Libre (2006) - Está rindo do quê? O trabalho de edição dos diálogos deste filme ficou coisa seríssima!
- A Viagem (2012) - uma aula de edição de diálogos, ainda mais levando em conta a quantidade de personagens, épocas e lugares.
- Cidade de Deus (2002) - minuciosidade e clareza. Uma referência obrigatória na história do moderno cinema nacional.
- A Rede Social (2010) - entre as muitas virtudes sonoras desse filme, os diálogos são destaque, ainda mais pelo estilo de interpretação de Jesse Eisenberg.
Efeitos sonoros
- Cartas de Iwo Jima (2006) - quando você tem em sua equipe um especialista em sons de explosões e o seu filme é ambientado na Segunda Grande Guerra, fica difícil errar.
- 2Coelhos (2012) - outro destaque na recente safra de filmes brasileiros. Poderia entrar facilmente também na lista de mixagem.
- Bullitt (1968) - tem no final uma cena clássica de perseguição de carros nas ruas de San Francisco. Impossível lembrá-la sem o ronco dos motores. Foi indicado ao Oscar de Melhor Som.
- Star Wars (1977) - revolucionário, épico e iconoclástico. Foi (e é até hoje) referenciado, imitado e parodiado à exaustão.
- Pequena Miss Sunshine (2006) - no geral tem um trabalho de som bem simples e mediano. Mas coloquei nesta lista por causa da genialidade da criação de um único elemento sonoro: a buzina defeituosa da Kombi.
- Fogo Contra Fogo (1995) - os filmes de Michael Mann são muito irregulares (pelo menos em termos de som). Mas a sequência do tiroteio nas ruas de Los Angeles é referência obrigatória (e não só em termos de som).
- Top Secret (1984) - tão divertido quanto apreciar o uso dos efeitos sonoros desse pequeno clássico deve ter sido trabalhar neles.
Mixagem
- O Ultimato Bourne (2007) - ao final da sessão eu estava com os olhos marejados. Sério! Ganhou merecidamente os dois Oscars de Som.
- Os Indomáveis (2007) - impressionante em sua concepção e detalhamento. Indicado ao Oscar, perdeu para o título acima.
- Rango (2011) - em termos de mixagem, animações são sempre um desafio, mas esta superou muitas expectativas.
- O Artista (2011) - tá de brincadeira, né? Pode ser... Mas coloquei nesta lista só por causa da cena em que Valentin sonha que o mundo está começando a ficar sonorizado. Vão surgindo na sequência foley, ambiências, efeitos sonoros e ADRs. Enfim, uma sequência digna de um clássico.
- Sobrenatural (2010) - mixagem equilibrada, com uma dinâmica muito bem concebida. Metade de todo o clima arrepiante e perturbador se deve a ela.
- Onde os Fracos Não tem Vez (2007) - em filmes dos irmãos Coen pode apostar em um trabalho de mixagem e concepção sonora bem acima da média. Mas esse aqui figura no topo.
- Flores do Oriente (2011) - complexa, detalhadíssima, sofisticada. Deveria ser estudada, dissecada e debatida em todas as escolas de Cinema.
- Os Olhos de Julia (2010) - ou "uma Master Class de mixagem tendo como ingredientes bom gosto, coesão e inteligência".
Pois bem, na próxima vez que você estiver em um bar com os amigos e alguém soltar: "sabe o filme tal? Adorei o som", lembre-se: é raríssimo alguém que não seja do meio se referir ao som de um filme! Então levante seu copo. Isso merece um brinde!
PAULO DE TARSO é editor de áudio e mixador. Trabalhou no departamento de som dos longas Ensaio Sobre a Cegueira e Era Uma Vez. Dono do estúdio Lux Sonora - Pós-Produção de Som para Cinema e Publicidade, em Curitiba.
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