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Uma animação cheia de som e fúria Frame Sonoro

Foto: Helena Maura

Faça um favor a si mesmo e, principalmente, aos seus ouvidos: vá assisitir a Uma História de Amor e Fúria na melhor sala de cinema da sua região, onde tenha uma boa imagem e um sistema de som decente. Não perca a oportunidade de apreciar um filme que pode se tornar um divisor de águas na área de pós-produção sonora deste país e que possui um dos mais complexos e minuciosos trabalhos de sound design do cinema brasileiro até o momento.

E agradeça aos responsáveis: Alessandro Laroca, Armando Torres Jr. e Eduardo Virmond. Estes três têm em seu impressionante currículo obras marcantes do cinema nacional, do porte dos dois Tropa de Elite, Ensaio Sobre a Cegueira e 2 Filhos de Francisco, entre muitos outros. O estúdio deles, o 1927Audio, é hoje o mais importante e o mais premiado no país dentro desse segmento. Mas com esta animação dirigida por Luiz Bolognesi, eles conseguiram dar um passo além.

Por sua natureza, animações dão muita liberdade de planos, enquadramentos e perspectivas aos seus criadores/diretores. Afinal, não existe limite para a câmera. Essa característica torna este tipo de produção uma ótima oportunidade para se exercitar a criatividade na área do som, mas é também um grande desafio tanto técnico quanto artístico. Quem for se aventurar a sonorizar animações tem que pensar de maneira diferente, tem que abordar o desenho de som com uma outra perspectiva quando comparado ao de um filme live action (filme tradicional). E nesse Uma Históra de Amor e Fúria podemos perceber que a equipe de som conseguiu explorar ao máximo a oportunidade que lhes foi oferecida.

Mudanças abruptas de perspectivas, quebra de eixos, enquadramentos inusitados aliados a uma montagem extremamente ágil, tudo isso exigiu um aprofundamento na maneira como o desenho sonoro teve que ser concebido e executado. Foi necessária uma outra forma de se pensar e trabalhar. Deve ter sido exaustivo, mas o resultado é recompensador.

O mais notório é que neste filme o som consegue ampliar o espaço diegético, expandir as fronteiras do frame. Não que isto seja novidade, mas é uma percepção sofisticada na abordagem sonora de um filme nacional.

Então vamos ao que interessa. Mas antes um aviso: não dá para comentar algumas cenas sem entrarmos em detalhes da narrativa. Assim, falando num linguajar mais cinéfilo, daqui em diante você vai estar pisando em terreno cheio de spoilers!

- Já no início da projeção, nas logomarcas oficiais e obrigatórias de filmes que recebem apoio estatal, percebemos algo diferente: as logomarcas estão animadas e já vêm acompanhadas de efeitos sonoros. É só um detalhe, mas uma novidade muito interessante e bem-vinda .

- Antes do primeiro plano surgir, já ouvimos potentes sons de aeronaves circulando pelos canais surround, seguidos de tiros e vozerios. Estamos numa espécie de campo de batalha. Quando enfim vemos o personagem de Selton Mello, ele está parado em uma espécie de plataforma e ouvimos sua narração sobre quem ele é e o que está fazendo ali naquele momento. Daí ele cita Janaína (Camila Pitanga), o grande amor da sua vida e toda aquele caos ruidoso subitamente muda, se torna grave e lento, uma espécie de slow motion sonoro. Estamos dentro da cabeça do personagem e o desenho de som ajuda a reforçar esses sentimentos interiores.

Não temos nem cinco minutos de filme e a plasticidade e dinâmica sonora já impressionam.

Vamos adiante, destacando alguns trechos:

- No primeiro segmento, no Brasil de 1566, somos apresentados a um cenário selvagem, pré-colonial, onde os sons ambientes das florestas predominam. Observem como esses sons se alternam de acordo com as diferentes etapas da narrativa. As texturas e nuanças dos insetos, aves, árvores, vento, ora são mais suaves, ora mais densos e carregados, de acordo com o "clima" do que está acontecendo.

- Em certo momento, Abeguar, o personagem tupinambá de Selton Mello, e Janaina, a personagem de Camila Pitanga, estão à beira de um precipício, encurralados por uma ameaçadora onça negra. E eles se jogam naquele precipício para escapar da fera. Como assim? Quem em sã consciência saltaria em um abismo para escapar de um animal selvagem? Provavelmente essa seria uma das opções, mas uma das últimas! Como tornar a decisão desses personagens verossímil? A solução encontrada foi por meio do desenho de som: a maneira como o rugido do animal foi utilizado o tornou de tal forma ameaçador que saltar no precipício foi a melhor opção.

- Mais adiante, quando o protagonista engole uma poção dada pelo pajé, os sons ambientes se alteram, criando um efeito alucinógeno similar aos efeitos visuais provocados pela bebida.

- Na sequência, em sua alucinação, Abeguar é apresentado a Anhangá, o terrível arauto da destruição e da morte. É simplesmente impressionante a quantidade de camadas sonoras sobrepostas que acompanham a animação frenética e macabra. E todas predominantemente nas frequências médio-agudas. É um dos momentos de maior pressão sonora de todo o filme. Consequência: uma senhora porrada na orelha! Mas o resultado é eficientíssimo. O som aumenta, e muito, a percepção da força maligna de Anhangá.

- Ainda dentro desta primeira narrativa da Colonização, outro ponto de destaque são os tiros de canhões das naus portuguesas e francesas, bem como os tiros das armas utilizadas pelos soldados. São estampidos secos, rústicos, fiéis aos sons das armas da época, sem a sofisticação dos sons das armas atuais. Demonstram cuidado e profissionalismo da equipe na busca de uma fidelidade sonora.

- Já no segundo segmento, Balaiada, o traço do desenho é muito menos sofisticado do que o das outras histórias. Provavelmente porque tenha sido o primeiro episódio a ser produzido e é notável perceber como o desenho de som preenche certas deficiências visuais. Aqui existe uma sequência notável: momentos antes da filha adolescente de Balaio (Selton Mello) ser estuprada por um capitão do exército, o clima de tensão já é antecipado pelos elementos sonoros: cavalos relinchando furiosamente, vento, trovões e as risadas da tropa de jagunços.

- Ainda na Balaiada, todos os sons de movimentação dos cavalos e carroças foram gravados em estúdio pelo departamento de foley: cascos, arreios, selas, estribos, freios, o ranger das rodas... A única exceção foram os relinchos que foram retirados de bancos de sons.

- Já no Brasil dos anos 60, na época da ditadura, é digno de menção o uso das reverberações no interior das prisões, a maneira como o efeito foi empregado para aumentar a sensação de opressão e impotência dentro daqueles lugares imensos, sujos e deprimentes.

- Agora em 2096, o que mais impressiona é a quantidade absurda de camadas sonoras existentes para compor aqueles cenários altamente tecnológicos e abarrotados de dispositivos futuristas: hologramas, telas, gráficos, dispositivos de comunicação, locuções, músicas ambientes. Tudo com sonoridades distintas. Apesar da sofisticação, isso tem um lado negativo: uma quase overdose sonora. Se o futuro for desse jeito, a humanidade vai estar cheia de deficientes auditivos. A boa notícia é que este episódio é o mais curto de todos.

- Ainda no Rio de Janeiro do futuro existe um detalhe, um pouco mais técnico, mas digno de nota: as turbinas das aeronaves vêm acompanhadas de um potente som grave. E esses graves são dinâmicos, em sincronia com o movimento das naves. Esse efeito é conhecido como Doppler, um velho conhecido de quem trabalha com áudio. O que é interesante aqui é o efeito Doppler ser aplicado nas frequências baixas, aumentando, e bastante, o realismo do deslocamento dos jatos.

Foto: Helena Maura

Mas é só alegria e perfeição no som deste filme ou também existem problemas? Claro que existem. Como não poderiam existir? Os mais notórios dizem respeito às dublagens. A locução de Selton Mello é monocórdica, linear demais. Todos os seus personagens são frios, carecem de emoção. Camila Pitanga consegue imprimir um pouco mais de vida às suas várias Janaínas, mas ainda peca um pouco na falta de uma "personalidade sonora".

E isso é culpa de quem? Do diretor? De quem escalou o elenco? De quem dirigiu as gravações? Ou da falta de uma estrutura acadêmica que ensine atores e atrizes desse país a dublar quando necessário? Porque, sim: dublar é um processo difícil e complicado. Exige técnica, tempo e dedicação. Tanto do ator quanto de quem o dirige. 

Dublar, geralmente, é a última opção na etapa de edição de diálogos. Mas isso é discussão para uma outra hora. O fato é que somente Rodrigo Santoro (do trio principal) consegue imprimir uma caracterização vocal impressionante aos seus dois personagens (o cacique e o guerrilheiro namorado de Janina no período da ditadura), atingindo duas performances distintas e notáveis.

Mas pior ainda que o par principal são as vozes secundárias, principalmente as ambientadas no Rio de 2096. As inúmeras locuções dos noticiários, dispositivos eletrônicos, soldados, rádios e etc. são, no mínimo, inadequadas, para não dizer constrangedoras.

Outro problema diz respeito a algumas músicas. Tomemos como exemplo a primeira transição temporal, da época da Colonização para o da Balaiada. A música desse trecho em específico possui um tema belíssimo: é emocional, sensível e casa perfeitamente com a cena. Só que os timbres utilizados no arranjo põem quase tudo a perder. Já na música de transição da época da ditadura para 2096 nada se salva, nem tema, nem arranjo. E, sinceramente, não precisava colocar a Camila Pitanga para cantar. Não que ela cante mal, mas além da música ser bem fraquinha, foi algo totalmente desnecessário.

Em termos sonoros, Uma História de Amor e Fúria está em outro patamar, muito acima da média nacional. Estamos adentrando um território novo em que os parâmetros técnicos e artísticos estão dando um passo importantíssimo.

Arrisco a dizer que este filme trará ao Brasil o seu primeiro prêmio Golden Reel da MPSE (Motion Picture Sound Editors), o "Oscar" da categoria. Aliás, foi esta mesma equipe que quase ganhou esse prêmio em 2012 com Tropa de Elite 2, de José Padilha, perdendo para Flores do Oriente, de Zhang Yimou.

Tudo isso são ótimas notícias para o cinema nacional. Para o público do cinema nacional. Mas, principalmente, para os ouvidos desse público.

PAULO DE TARSO é editor de áudio e mixador. Trabalhou no departamento de som dos longas Ensaio Sobre a Cegueira e Era Uma Vez. Dono do estúdio Lux Sonora - Pós-Produção de Som para Cinema e Publicidade, em Curitiba.
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