Nesta edição do Clube dos Cinco escolhemos filmes que... Opa! Para tudo! Esta coluna é a Frame Sonoro!
Pois bem, como uma homenagem a uma das colunas mais legais do Cinema em Cena (clique aqui para ler), nesta edição eu vou comentar filmes em que o som é o protagonista, o desencadeador da ação, o condutor da trama, o manda-chuva do pedaço. Isso existe? Claro!
Vamos a eles, em ordem cronológica:
1) A Conversação (The Conversation, 1974, EUA, dir.: Francis Ford Coppola)
Lançado entre os dois primeiros O Poderoso Chefão (e talvez por causa disso), foi por muito tempo um filme subestimadíssimo, mesmo tendo vencido a Palma de Ouro em Cannes. "Descoberto" na década de 80, é hoje considerado uma obra-prima inconteste de Francis Ford Coppola. Um pequeno drama que levanta questões como privacidade, ética e fé. Aliás, o diretor volta e meia cita esse título como o seu preferido.
Harry Caul, magistralmente interpretado por Gene Hackman, é um investigador particular contratado para gravar conversas alheias. Em um dos seus trabalhos, ele é acometido por uma crise de consciência quando desconfia que o casal de amantes que está gravando pode ser assassinado. O seu empregador, um poderoso e colérico empresário interpretado por Robert Duvall, em poder das fitas, teria uma prova irrefutável da infidelidade da mulher.
Arredio, excessivamente introvertido e católico fervoroso, Caul é tragado por uma espiral de paranoia e obsessão que culmina em um confronto com o seu passado e seus medos mais profundos.
O diálogo gravado por Harry é o desencadeador de toda a trama e Coppola habilmente constrói um quebra-cabeças sonoro que aos poucos vai se revelando muito mais do que uma simples conversa banal entre amantes.
É antológica toda a sequência inicial, onde o casal passeia numa imensa praça e Harry distribui sua equipe em pontos estratégicos para gravar a tal conversa. As soluções empregadas para aproximar discretamente os microfones do casal remetem ao trabalho do técnico de som direto em um set de filmagem. Só que, neste caso, não existem opções de várias tomadas. Tudo tem que sair perfeito. Só que não é isto o que acontece e, na sequência, vemos Harry realizar um trabalho básico de edição de áudio para tentar tornar inteligível todo o material captado.
Concebido e orquestrado pelo sempre genial Walter Murch, o desenho de som deste filme brinca o tempo todo com o real e o imaginário, o abstrato e o concreto. No terceiro ato, quando se acentua o clima de tensão e suspense, o emprego de ruídos e sons extra-diegéticos é simplesmente primoroso. O uso do silêncio como metáfora do estado mental do protagonista é outro recurso empregado de forma criativa e pontual.
E para completar, temos ainda a belíssima música de David Shire: melancólica e evocativa.
A Conversação foi indicado ao Oscar de Melhor Som, mas perdeu para, acredite se quiser, Terremoto.
2) Um Tiro na Noite (Blow Out, 1981, EUA, dir.: Brian De Palma)
Outro filme que poderia entrar na categoria "subestimado". Escrito e dirigido por Brian De Palma é o projeto anterior ao seu trabalho mais popular: Scarface.
A história gira em torno de Jack Terry (John Travolta), um técnico de som de filmes bagaceiros que acaba gravando, involuntariamente, um grave acidente de carro. Por causa dessa gravação, ele se vê metido em uma trama envolvendo um candidato a presidente da república, um assassino serial, uma garota de programa e seu cafetão chantageador.
Metalinguístico, cheio de referências a outros filmes, Blow Out é claramente inspirado em A Conversação, de Coppola, e Blow Up - Depois Daquele Beijo, de Michelangelo Antonioini (deste último, emprestou até parte do título, além de substituir a ferramenta de trabalho do protagonista - a câmera fotográfica por um gravador de som).
Como todos os demais títulos desta lista, é ambientado na época dos equipamentos analógicos. E, igual ao filme de Coppola, o áudio gravado desencadeia toda uma série de trágicos eventos. Jack busca, a partir de técnicas básicas de edição de som e imagem, reconstruir a prova de que o acidente de carro foi, na verdade, um assassinato.
Algumas cenas que merecem destaque:
- Nos criativos créditos iniciais, em forma de colagem, vários elementos sonoros que vão ser utilizados durante o filme já são apresentados;
- Quando Jack vai gravar sons de ventos solicitados pelo seu produtor em uma ponte aparentemente deserta, é notável toda a sequência de enquadramentos e movimentos de câmera: plongées, contra plongées, closes, panorâmicas. E um detalhe interessantíssimo: os sons ouvidos pelo personagem se antecedem ao evento visual. Primeiro ouvimos o sapo, depois o vemos. É um momento raro de se presenciar em um filme: a imagem procurando a fonte sonora, o olhar em busca do som.
- Mas o ponto alto em termos de criatividade é a cena da câmera girando 360 graus, quando o protagonista descobre que suas fitas foram apagadas. Este movimento circular enfatiza a paranoia e a confusão vividos pelo personagem. A colagem de sons das fitas apagadas é um primor de inventividade, fugindo do óbvio e enfatizando a tensão do que está acontecendo. É pura música concreta. John Cage, se assitiu ao filme, deve ter ficado orgulhoso.
- Jack se utiliza de técnicas básicas de montagem e sincronismo para tentar desvendar o crime. Isto é mostrado em detalhes, apesar de sua clara inverossimilhança.
- O final, com a solução encontrada pelo protagonista para resolver o problema da dublagem do grito, é de um humor negro, de um cinismo que só atesta a genialidade de Brian De Palma.
Um tal de Quentin Tarantino elegeu este Blow Out como o seu terceiro filme preferido de todos os tempos e escalou John Travolta para viver Vicent Vega por causa de sua performance neste trabalho.
3) Vermelho Como o Céu (Rosso Come il Cielo, 2006, Itália, dir.: Cristiano Bortone)
Impossível não se emocionar com esta produção italiana dirigida por Cristiano Bortone e que conta a história verídica do menino Mirco Mencacci, que viria a se tornar um renomado editor e produtor de áudio em seu país.
Aqui, o papel do som entra numa área predominantemente emocional. Ele é utilizado como pura ferramenta de expressão artística e de canal condutor da imaginação fértil de uma criança.
Cego aos oito anos, no início da década de 70, Mirco é enviado a um internato somente para crianças deficientes visuais e lá descobre que pode contar imaginativas histórias utilizando apenas um gravador de som.
É um filme de superação e, coisa raríssima nesta área, é emocionante sem ser apelativo ou piegas. Tem lá seus momentos forçados (o protesto contra a escola, o diretor inflexível), mas nada que comprometa.
É particularmente emocionante a cena em que Mirco descobre que pode emular o som de uma gota de chuva simplesmente batendo com o seu dedo no chão do banheiro molhado. Ou quando aprende as técnicas básicas de edição, cortando e emendando os pedaços de fita magnética. Ou quando explora as possibilidades sonoras dos utensílios da cozinha da escola.
As técnicas de criação de vários elementos sonoros são mostrados: foley (passos), efeitos (o dragão, pássaros, a luta de espadas), ambiências (a caverna, insetos, vento) e diálogo (a narração, personagens). Mas nada é didático ou gratuito. Está tudo muito bem costurado à narrativa.
A música comovente e emocionante de Ezio Bosso segue a escola minimalista de Michael Nyman e Yann Tiersen e se harmoniza perfeitamente com a história.
Vermelho Como o Céu foi eleito o Melhor Filme na edição de 2006 da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mas ganhou uma dezena de outros prêmios ao redor do mundo em sua bela carreira.
É um desses trabalhos que merecem ser periodicamente revisitados. E sempre consegue emocionar.
4) Berberian Sound Studio (2012, Reino Unido, dir.: Peter Strickland)
Ainda inédito no Brasil, este filme escrito e dirigido pelo inglês Peter Strickland é uma pequena obra-prima que homenageia os filmes de terror italianos da década de 70. O roteiro evoca habilidosamente O Inquilino, de Roman Polanski, e (de novo!) o acima comentado A Conversação, tendo como centro o processo de desestruturação mental do protagonista.
Toby Jones, em um trabalho excepcional, interpreta Gilderoy, um engenheiro de som britânico contratado por um estúdio italiano para finalizar um filme chamado The Equestrian Vortex. Estamos na década de 70 e este longa faz parte do gênero conhecido como giallo, filmes que exploram elementos sobrenaturais, principalmente demonismo e bruxaria. Frequentemente são sanguinolentos e apelativos, com belíssimas mulheres seminuas sendo mortas por demônios, bruxas ou, eventualmente, algum serial killer. Dario Argento (Suspiria, Prelúdio Para Matar) talvez seja o maior expoente desse gênero.
Pois bem, Gilderoy tem a incubência de finalizar todo o som do filme. Só que ele é pressionado o tempo todo por um produtor implacável e um diretor arrogante que tem o ego maior que a Torre de Pisa.
O protagonista é um estranho numa terra estranha: solitário, não fala italiano e é frequentemente maltratado e ignorado pelos funcionários do pequeno estúdio. E essa mistura de solidão, pressão e mais as imagens e sons bizarros que ele tem que lidar no seu dia-a-dia começam a afetá-lo perigosamente.
A grande ideia deste Berberian é a utilização do som como elemento capaz de evocar imagens de horror, provocar a imaginação do público. Não vemos um mísero frame do filme que está sendo editado pelo protagonista mas somente a apresentação dos seus elementos sonoros é suficiente para provocar medo e pertubação.
Utilizando de forma brilhante o poder narrativo do som, Strickland consegue criar um clima de claustrofobia e terror crescentes que culminam num final ambíguo, tortuoso e inesperado.
O diretor também manipula habilmente todos os elementos imagéticos, conseguindo resultados extraordinários. Impossível não se contorcer na poltrona ao ouvir o som de melancias sendo esmagadas, imaginando uma marreta destruindo o corpo de uma bruxa. Ou quando Gilderoy corta alguns talos de rabanete para a cena em que um torturador arranca os cabelos de sua vítima.
Strickland, um declarado admirador do processo de criação de sons para cinema, mais do que homenageia: ele insere com inteligência vários elementos sonoros como desencadeadores de processos e situações que afetam os personagens do seu filme.
Mais uma vez, como todos os outros títulos desta lista, estamos na era analógica, com seus players e gravadores em fita e amplificadores valvulados. E somos brindados com vários técnicas empregadas na produção sonora na época: a criação de efeitos sonoros se utilizando de dispositivos que hoje são considerados obsoletos, a gravação das dublagens (ou ADR) preocupada com o sincronismo em tempo real e a criação de efeitos de eco por meio de loops de fitas. Mas tudo isso fazendo parte da narrativa, não sendo um exibicionismo gratuito. Tudo inserido na trama com inteligência.
E curiosidade: a excêntrica dupla de artistas de foley, Massimo e Massimo, que destróem dezenas de melancias, abóboras, repolhos e outros vegetais para criar os efeitos sonoros de corpos sendo dilacerados, esmigalhados e decepados, trabalham da mesma maneira que os artistas de foley dos dias atuais. Esse ofício ainda não foi "atualizado", dependendo muito mais de habilidades manuais e criatividade do que de artefatos tecnológicos.
Berberian Sound Studio é uma experiência sensorial fascinante e é somente o segundo longa do diretor Peter Strickland.
Alguém precisa fazer um abaixo-assinado para que algum distribuidor lance o filme logo no Brasil.
5) O quinto filme é...
Puxa vida ! Não tem quinto filme! Eu disse que tinha só pra fazer a brincadeira com o Clube dos Cinco!
Mas se você, caro leitor, tiver alguma sugestão que se encaixe nesta lista e quiser fazer a sua própria análise, seja muito bem-vindo! Use e abuse da seção de comentários abaixo.
--
PAULO DE TARSO é editor de áudio e mixador. Trabalhou no departamento de som dos longas Ensaio Sobre a Cegueira e Era Uma Vez. Dono do estúdio Lux Sonora - Pós-Produção de Som para Cinema e Publicidade, em Curitiba.
Observação: as cenas do filme apresentadas nesta coluna têm caráter meramente ilustrativo. Recomendamos que você assista ao filme em DVD ou Blu-ray para perceber todos os detalhes do design de som mencionados na análise.
--
EDIÇÕES ANTERIORES DA COLUNA