Trabalhar com pós-produção de som pode ser uma tarefa bem ingrata. Por quê? Porque quanto melhor está o trabalho, menos ele é percebido, menos é notado. É o chamado "trabalho invísivel".
Um dos maiores pecados que um desenho de som pode cometer em um filme é chamar a atenção para si. Isso causa o que é comumente chamado de "distrair o público", "tirá-lo do filme", arrancá-lo da história a que está assisitindo. Isso não é bom para o filme, para os realizadores e muito menos para quem está na plateia.
E "chamar a atenção para si" pode ser tanto pelos excessos (volumes muito altos, exagero na quantidade de elementos sonoros) quanto na ausência (objetos ou personagens que simplesmente não soam, que deixam "buracos sonoros" na narrativa ou cuja escolha sonora seja inadequada, causando estranhamento).
Inimigos Públicos, produção lançada em 2009, parece ter seguido a cartilha do "vamos-fazer-o-som-chamar-a-atenção": diálogos desnivelados e sujos, sons que somem ou, pelo contrário, soam excessivos, mixagem desbalanceada e... mas espere aí! Como uma equipe gigantesca comandada por gente do porte de Laurent Kossayan (participou de quase todos os filmes de Jean-Pierre Jeunet) e Jeremy Peirson (Watchmen, Eu Sou a Lenda) e com a mixagem assinada por Kevin O´Connel (recordista de indicações ao Oscar) e Beau Borders (O Senhor dos Anéis, Transformers) pode ter errado tanto a mão?
Seria Inimigos Públicos um filme de baixíssimo orçamento? Ou o pessoal estava de má vontade e largou tudo nas mãos dos estagiários? Estaria o pessoal do som disposto a "quebrar todas as regras"? Ou a pressão do estúdio para que o filme fosse entregue era tamanha que não dava tempo de finalizá-lo de forma adequada?
Mas olhando a ficha técnica descobrimos algo muito interessante: quem dirigiu este filme foi MICHAEL MANN! Ah! Isso explica muita coisa!
Vamos destrinchar um pouco a coisa...
Para os fãs de carteirinha, é pecado mortal falar mal de Michael Mann. Assim como muitos nomes em Hollywood, ele possui uma legião de ferrenhos admiradores e qualquer coisa que tenha dirigido ou produzido já nasce com o status de obra-prima incontestável. E realmente, de suas mãos surgiram filmes que, merecidamente, entraram no panteão das grandes obras cinematográficas norte-americanas. Um ótimo exemplo é Fogo Contra Fogo, de 1995 (analisada por Pablo Villaça na série Jovens Clássicos).
Só que a grande maioria desses admiradores não sabe o que é trabalhar com ele e talvez desconheça a sua personalidade extremamente centralizadora. Obviamente não é um caso único de cineasta que acompanha de perto a produção de seus filmes, mas a sua obsessão com cada detalhe chega a ser folclórica.
Na etapa de finalização de som, sua presença é diária na sala de mixagem. Ele acompanha de perto todo o desenvolvimento do trabalho. Rodam histórias em fóruns internet afora que ele já chegou ao cúmulo de pedir para mudar o volume de determinadas sílabas de frases que os personagens falavam. Você leu direito: sí-la-bas!
É o exemplo perfeito de diretor que dá muito pouco espaço para a sua equipe criar ou desenvolver ideias próprias (e isto, talvez, se estenda a outros departamentos). E toda essa centralização têm consequências. Como sempre, boas e ruins.
Boas é que ninguém conhece tão a fundo o conceito, a complexidade e as intenções do trabalho como ele. As ruins... Bem... Basta assisitir, ou melhor, ouvir o filme para perceber.
Inimigos Públicos possui um desnível de diálogos impressionante. Talvez a intenção do diretor seja ressaltar algumas frases de alguns personagens em determinadas situações. Mas esses desníveis acabam incomodando e se tornando elementos de distração. Era comum, na época do lançamento, encontrar pessoas comentando que achavam que a sala de exibição estava com problemas.
Além de desnivelado, muitas vezes o som dos diálogos é o que a gente chama de "sujo". Explicando: quando um diálogo é gravado no set de filmagem, é comum, na pós-produção, ele precisar passar por um processo de limpeza, onde são minimizados os sons ambientes indesejados. Nem sempre sets de filmagem são lugares acusticamente isolados. Pois parece que Michael Mann tem predileção por usar o material em estado bruto, do jeito que foi captado no set, sem "maquiagem". Isto é facilmente percebido pelas grandes quantidades de falas com ruídos ao fundo. E não existe uma justificativa plausível para utilização desse tipo de material.
Tudo isso que comentei até agora é só uma primeira camada, uma impressão mais superficial do trabalho de som deste projeto. Vamos nos aprofundar um pouco mais.
O que na verdade parece ser a intenção principal de Michael Mann, quando ele dirige o trabalho de som deste filme, é que ele quer o equivalente a um POV (Point of View) da fotografia. Só que da perspectiva do som. O que o público ouve é, muitas vezes, somente o que o personagem está ouvindo. Só isso para justiifcar o que parecem ser erros grosseiros.
Vamos para alguns exemplos mais pontuais: a cena no restaurante dançante, quando John Dillinger (Johnny Depp) aborda Billie Frechette (Marion Cotillard) pela primeira vez, é um excelente exemplo desta espécie de POV a partir da audição do personagem Dillinger:
- no início da cena, quando ele está conversando com seus camaradas, tanto o som ambiente quanto a música da banda que toca ao vivo estão mixados de forma equilibrada;
- no momento seguinte, quando Dillinger se aproxima de Frechette, tanto o som da banda quanto o vozerio diminuem drasticamente (aliás, em um fade out nem um pouco sutil) e o diálogo deles fica em primeiríssimo plano. Por quê? É claro que Dillinger está com toda a atenção voltada para a bela Frechette. É o seu primeiro contato com ela. Estamos ouvindo o que Dillinger ouve;
- eles dançam, a música da banda volta a ficar em um nível alto, enquanto o vozerio dos demais frequentadores do restaurante praticamente some;
- na cena seguinte, eles vão para um outro restaurante e acontece algo inusitado em relação à mixagem. Assim que Dillinger confessa a ela que é um assaltante de banco, todos os canais surround somem repentinamente e os demais sons (diálogo, foley, ambiências) ficam concentrados no canal central, até a entrada da música extra-diegética, que, daí sim, volta a preencher os canais surround;
- os sons ambientes se abrem novamente quando eles estão se preparando para sair.
Toda a descrição acima é um verdadeiro achado em se tratando de concepção sonora: o ponto de "vista" auditivo do protagonista, o recurso de aumentar o volume para ressaltar certas frases ditas pelos personagens ou mesmo a eliminação de outros sons. Coisa de gênio, de quem sabe pensar o desenho de som como apoio à narrativa.
Mas a maneira como essas ideias foram colocadas em prática simplesmente comprometeram o resultado. Infelizmente! É tudo muito abrupto, muito seco, sem sutilezas. As diferenças de volume chegam a doer o ouvido e os cortes de som são repentinos e equivocados. E ainda tem o agravante dos diálogos virem todos misturados, uma verdadeira salada: sons diretos "sujos", sons diretos "limpos" e ainda dublagens. E, novamente, não existe justificativa conceitual ou narrativa que explique essa decisão de utilizar material deste tipo.
Mas vamos a mais um exemplo: na cena em que o todo poderoso J. Edgar Hoover (Billy Crudup), em uma audiência, é confrontado com o senador McKellar (Ed Bruce), o som da voz de Hoover é nitidamente mais alto do que a do senador. Afinal, ele, Hoover, é o chefão do FBI, o rei da cocada preta. Mas a partir do momento que McKellar pergunta a Hoover, "Quantas prisões você já efetuou?", e Hoover hesita e responde, "Nunca prendi ninguém!", o jogo se inverte. Agora, Hoover está na parede e McKellar é o rei da cocada preta. Deste momento em diante, a voz de McKellar é notoriamente mais alta que a de Hoover.
Novamente: é um conceito brilhante! O problema é que a interpretação ou entonação dos atores não muda, não acompanha essa dinâmica. Tudo é resolvido com o botão de volume. O resultado não é orgânico. Soa artificial.
Na cena do ataque dos policiais comandados por Melvin Purvis (Christian Bale) à pousada de campo em Little Bohemian, existem alguns pontos bem interessantes.
É noite. Os policiais se aproximam da cabana a pé e se movem sorrateiramente. O barulho dos grilos é incrivelmente alto para uma cena deste tipo. E os sons dos passos daqueles homens estão muito baixos. Por que essa discrepância na mixagem? Os policiais estão numa floresta que circunda a casa. Estão pisando em uma área com bastante vegetação. E numa determinada cena em que Purvis observa alguns dos bandidos saindo pela porta da frente (ele, Purvis, ainda está com seus homens, escondido, só observando) já não é possível ouvir mais nada de grilos. Sumiram! Evaporaram! Seria um "POV sonoro" de Purvis?
Na sequência seguinte começa um tiroteio formidável. Em termos de ação é o ponto alto do filme. Bandidos contra mocinhos numa troca de tiros épica. O curioso é que a mixagem concentra praticamente 90% dos tiros somente no canal central (misturados com foley, ADR e outros efeitos). É de se perguntar porque toda a ambiência de um tiroteio dessa proporção é muito pouco explorada nos diversos canais de som disponíveis.
(Agora, abrindo parênteses para uma verdade incontestável: não existem sons de tiros melhores que o dos filmes de Michael Mann. Isto é notório desde o já citado Fogo Contra Fogo, mas também temos ótimos exemplos em Colateral e Miami Vice. São magistralmente elaborados e possuem um "punch", um peso que os tornam objetos de estudo. E melhor que os sons dos tiros em si são as ambiências que os acompanham, o modo como é utilizado o efeito de reverberação. É impressionante!)
Mas continuando... Quase no final dessa sequência, durante uma perseguição a Dillinger pela floresta, quem volta para dar o ar de sua graça? Isso mesmo, os grilos! Surgem do nada, repentinamente. Aliás, algumas cenas mais adiante, quando Dillinger já está na cidade cuidando do ferimento de um dos seus companheiros, o mesmo (o mesmo!) som de grilos pode ser ouvido. O mesmo que ouvimos quando Purvis se preparava para atacar Little Bohemian. Se existe algum conceito aí, é algo muito abstrato ou hermético que talvez somente Michael Mann consiga explicar.
Só mais um detalhe para finalizar esta parte: muitas cenas mais adiante, quando a personagem Anna conversa dentro de um carro com Purvis, negociando os seus termos para entregar Dillinger ao FBI, ouvimos o mesmo som dos famosos grilos durante toda a conversa. Nem se deram ao trabalho de colocar uma variação ou outro take.... OK! OK! Chega de falar de grilos.
Retornando à ideia de POV auditivo, existem várias outras cenas em que este conceito é empregado:
- quando Dillinger chega preso em Indiana, ele é recebido por uma multidão no aerorporto. O som dessa multidão some ou reaparece dependendo do foco da atenção de Dillinger;
- no primeiro assalto a banco mostrado no filme, a partir do momento que o alarme dispara, o som dele praticamente domina a cena, fica em primeiríssimo plano. Os outros sons diminuem drasticamente;
- na fuga da prisão de Indiana é utilizado um carro com motor V8. Quem conhece carros sabe que esse tipo de motor possui um timbre bem característico. Pois bem, só para resumir, o público ouve o som do motor do carro somente após os bandidos estarem a salvo e sem risco de serem recapturados. Em boa parte, a cena da fuga fica inverossímel, pois o som do carro fica em um volume muito baixo, isso quando simplesmente não fica audível.
Ainda na questão da mixagem, é notável a interação da música extra-diegética com as outras camadas sonoras. Às vezes a música de Elliot Goldenthal soa excessivamente alta ou, pelo contrário, é estranhamente baixa quando deveria estar em em um nível mais adequado. Há uma cena em particular, no final do filme, em uma conversa entre Frechette e o personagem Charles Winstead (Stephen Lang), em que é quase constrangedora a diminuição (fade out) que a música sofre antes do diálogo.
Controverso, polêmico, Inimigos Públicos acirrou ânimos na época entre a comunidade dos apreciadores e/ou profissionais da área de som. Há os seus defensores: Randy Thom, o renomado mixador da Lucasfilm, elogiou: "[o filme] possui alguns detalhes sonoros ótimos na minha opinião, e tem uma mixagem de diálogos incomum para uma grande produção contemporânea." Kevin O´Connel, com seus mais de 150 filmes nas costas, disse na época que nunca aprendeu tanto sobre mixagem quanto trabalhando em Inimigos Públicos.
Sinceridade? Ironia? Ou esse pessoal estaria só adulando Michael Mann? Afinal, ele ainda é um nome quente na indústria e pode vir a ser o patrão em um próximo projeto.
O som de Inimigos Públicos é um trabalho que merece ser estudado. Como referência ou anti-referência. Já foi taxado de "barulhento", "desbalanceado", "equivocado". Ele pode ser muita coisa, menos "invisível".
Observação final: quero deixar bem claro que não tenho nada contra estagiários. Afinal, eu mesmo fui um durante muito tempo e foi uma época que deixou saudades.
PAULO DE TARSO é editor de áudio e mixador. Trabalhou no departamento de som dos longas Ensaio Sobre a Cegueira e Era Uma Vez. Dono do estúdio Lux Sonora - Pós-Produção de Som para Cinema e Publicidade, em Curitiba.
Observação: as cenas do filme apresentadas nesta coluna têm caráter meramente ilustrativo. Recomendamos que você assista ao filme em DVD ou Blu-ray para perceber todos os detalhes do design de som mencionados na análise.
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