Nesta e nas próximas edições do Frame Sonoro, vou fazer algumas análises rápidas dos filmes indicados ao Oscar 2012 nas categorias de Melhor Edição de Som e Melhor Mixagem. Começamos com o vencedor.
A Invenção de Hugo Cabret
O vencedor do Oscar 2012 tanto na categoria de Melhor de Edição de Som quanto em Mixagem me deixou cheio de dúvidas. O que será que realmente pesa e influencia na hora da votação da Academia? Estariam os votantes sendo bombardeados constantemente por lobistas endinheirados ou por propagandas apelativas? Ou o desempenho de um filme na bilheteria teria um peso maior ? Ou só o nome de tal diretor já seria suficiente para angariar milhares de votos? Ou ainda seriam critérios estritamente técnicos e artísticos? Mistério... Fico me perguntando (inutilmente) como um filme que possui uma pós-produção de som tão pobre e que nem deveria ter sido indicado, não só o foi como levou para casa os dois prêmios!
Os responsáveis pelo som de Hugo, Tom Fleischman e Philip Stockton, são parceiros habituais de Martin Scorsese. Mas também já trabalharam com os irmãos Coen, Jonathan Demme, Michel Gondry, Oliver Stone, Richard Linklater e muitos outros diretores da chamada primeira linha de Hollywood. Ou seja, experiência e tempo de estrada eles têm. Então, é de se surpreender que o trabalho apresentado neste filme seja tão aquém do esperado. Portanto, vamos aos fatos.
Já nas (maravilhosas) imagens iniciais de Hugo, sentimos que naquela Paris invernal não existe uma ambiência de som bem trabalhada. Nem um vento ou uma brisa sequer que seja para ajudar a compor aquele cenário gelado. Só a música onipresente e alguns efeitos esparsos. OK. Isso é uma concepção dos desenhistas de som. Não tem nada de errado nisso. Só tem um problema: essa fórmula vai se repetir no filme inteiro.
Quando a câmera passeia pela primeira vez na gigantesca estação de trem, basicamente o que ouvimos (além da música) são sons de passos e vozerio. Um lugar descomunal daqueles, com milhares de possibilidades sonoras, e tudo o que nos é apresentado são vozes e passos.
Na sequência seguinte, quando Hugo Cabret (Asa Butterfield) começa a percorrer o interior de um grande relógio, com seus inúmeros mecanismos, corredores metálicos e passagens esfumaçadas, mal podemos ouvir seus passos. Temos aquele lugar lindamente desenhado oferecendo mil oportunidades para se explorar um rico filão sonoro e tudo o que nos é oferecido é (óbvio) muita música e alguns efeitos de portas metálicas abrindo e guinchos de fumaça.
E essa concepção, como eu já disse, vai acompanhar o restante do filme.
As cenas dos diálogos entre Hugo e Georges (Bem Kingsley) possuem uma particularidade interessante: as ambiências praticamente somem. Vemos as pessoas andando atrás deles, uma movimentação cênica acontecendo, mas tudo o que ouvimos são as vozes... e a música (óbvio novamente). Isso também acontece quando eles estão caminhando fora da estação, na neve, em direção à casa de Georges. Aliás, a concepção inteira do filme parece centrada nestes pontos: diálogos em primeiro plano, música onipresente e efeitos sonoros aparecendo em seguida, deixando foley e ambiências para trás. Isto é tipicamente um conceito sonoro de produtos audiovisuais feitos para a televisão. As novelas brasileiras seguem exatamente este padrão.
Até na área de efeitos sonoros o filme peca. Quando Hugo passeia pelo interior dos enormes relógios podemos ver dezenas de mecanismos gigantescos, engrenagens metálicas e roldanas girando. O visual é fantástico! Mas o que ouvimos é muito pequeno, muito pobre. São tique-taques anêmicos e insossos. Fleischman e Stockton perderam uma grande oportunidade de explorar sonoramente este universo visual maravilhoso. Hugo parece ser o típico filme que investe todas as suas fichas nos aspectos imagéticos e deixa um enorme vazio na parte sonora. Não nos resta nada a não ser lamentar.
Mas (como sempre) existem os pontos positivos. Como já dito anteriormente, os diálogos são um dos pontos fortes: limpos, muito bem captados e editados. Apesar de alguns deslizes quase imperceptíveis (quando Hugo e Isabelle, personagem de Chloë Moretz, retornam à estação, o guarda interpretado por Sacha Baron Cohen ordena que eles parem – existe ali uma falha de sincronismo labial incrível).
Outro ponto a se destacar é quando o autônomo é ativado. Ali, sim, aparece um desenho de som bem concebido, complexo e muito bonito. E a música de Howard Shore também é funcional e orgânica, apesar de estar irritantemente presente em praticamente 95% do filme.
Mas esses pontos são muito pouco para justificar a vitória dupla do filme nas categorias de som do Oscar. Aliás, é muito pouco até para o filme ser indicado... O trabalho de som deste filme está a quilômetros de distância de, por exemplo, Millennium - Os Homens que Não Amavam as Mulheres, de David Fincher, que abordarei na próxima edição da coluna. Mas, ao que tudo indica, Scorsese é hoje em dia muito amado, respeitado e admirado dentro da Academia.
Drive
Coerência e simplicidade. Estas são as palavras-chave para entender o som deste filme e a sua indicação para o Oscar de Melhor Edição de Som.
Lon Bender e Victor Ray Ennis são dois veteranos da área, com décadas de carreira e um Oscar na prateleira por Coração Valente, de Mel Gibson.
Em Drive, eles optaram por um trabalho econômico e mais simples, mas muito coerente com o perfil do personagem-sem-nome interpretado por Ryan Gosling. E "econômico" não quer dizer "pobre" ou "preguiçoso". Está tudo lá: o foley bem editado, as ambiências contribuindo na composição dos cenários e os efeitos sonoros ajudando a impulsionar a viagem de violência e vingança do Motorista. Tudo muito preciso, muito bem desenhado.
Mas o grande destaque é um conceito sonoro usado de forma bem interessante e muito sutil: o uso dos sons graves. Sempre que o Motorista está envolvido com morte e/ou violência é notória a utilização de frequências mais baixas para exacerbar esses momentos. Sejam nos tiros, colisão dos carros ou até mesmo na própria música.
E é realmente só quando ele vive essas situações "de verdade". Por exemplo, quando ele está simulando uma batida de carro, no seu trabalho de dublê, essa utilização dos graves não ocorre. Isso é um ótimo exemplo de uso conceitual do som fílmico. No caso, o desenho de som foi utilizado para ajudar a compor um personagem e o seu estado mental ou momento difícil que está passando.
Mas, infelizmente, essa é uma situação (ainda) rara. Os irmãos Coen utilizam bastante (e bem) conceitos sonoros em seus trabalhos. Aliás, Drive, no geral, me lembrou bastante os primeiros filmes dos Coen.
Existem muitas possibilidades dentro de um universo sonoro como o do cinema. Basta os diretores (e roteiristas) saberem e quererem utilizá-las. E Drive é um ótimo exemplo. Alguns outros pontos de destaque deste trabalho do diretor Nicolas Winding Refn:
- a maravilhosa utilização dos sons médios/graves em conjunto com a câmera lenta;
- as brincadeiras de música diegética e não-diegética (festa no apartamento quando Standard volta para casa);
- a edição e escolha dos sons dos carros;
- a música, que neste caso deixa de ser mero acessório ou direcionador das emoções do público e torna-se parte orgânica da trama;
- os sons absolutamente repugnantes da "famosa" cena do elevador.
Já foi um grande mérito deste trabalho ter sido indicado ao Oscar. Geralmente, filmes deste porte (e orçamento) passam batido nas indicações. Uma boa notícia à simplicidade e à inteligência.