Se existe um gênero cinematográfico que pode se beneficiar de recursos sonoros para maximizar os seus efeitos, este gênero é o terror. Um bom filme do estilo quase sempre tem um bom desenho de som associado. É óbvio que desenho de som nenhum consegue salvar um roteiro mal concebido ou uma direção mal resolvida, mas quando esta equação funciona podemos estar perto de uma obra-prima.
Mas, infelizmente, o que mais vemos/ouvimos hoje em dia são filmes de terror que usam, abusam e irritam com música excessiva. A maioria dos realizadores insiste que a música direcione as emoções do público e, frequentemente, subutilizam outros recursos sonoros disponíveis.
Vamos abordar dois filmes que possuem uma concepção de som exemplar utilizando pouquíssima música. São ótimas referências no emprego de sons diegéticos intrinsecamente ligados à narrativa de forma orgânica, inteligente e eficiente.
[REC] e [REC] 2 (este último ganhou o título [REC] Possuídos aqui no Brasil) são duas produções espanholas, dirigidas em conjunto por Jaume Balagueró e Paco Plaza e foram lançadas respectivamente em 2007 e 2009. O responsável pelo som dos dois é Oriol Tarragó, espanhol já premiado pelo desenho de som de O Orfanato e por [REC] 2.
[REC]
Todo o filme gira em torno das filmagens feitas por uma equipe de TV. O trabalho de Tarragó foi desenhar o som do filme a partir deste único POV (ponto de vista). Apesar do baixo orçamento e dos prazos curtos, ele conseguiu realizar uma proeza: [REC] é uma aula de desenho de som tanto no aspecto conceitual quanto no técnico. Vamos aos fatos:
- Com muitos planos abertos e sequências "sem cortes" (entre aspas porque devem haver muitos cortes escondidos por ali), os atores tiveram que utilizar microfones de lapela (pequenos microfones que podem ser escondidos nas roupas ou, dependendo do modelo, até mesmo no cabelo), além do tradicional microfone shotgun e também do microfone da própria câmera, operada pelo diretor de fotografia Pablo Rosso. Isto permitiu que os responsáveis pelos diálogos tivessem várias opções na hora de editar. O resultado é um diálogo limpo e conciso na maior parte do tempo.
- Apesar de ter sido lançado em 5.1 é bem evidente que a maioria dos sons que ouvimos são monofônicos ou estéreos. E aí está uma sacada genial, porém óbvia: o que temos ali é uma espécie de documentário com o ponto de vista de uma câmera de TV. Se o desenho de som se utilizasse demais do surround, o público poderia perder aquela sensação de "realismo" do filme. Na maior parte do tempo, as vozes estão só e somente só no canal central.
- Nunca vemos helicópteros no filme. Mas através de luzes e sons o público sente que eles estão sempre lá, voando ao redor do prédio. Oriol "brinca" com os sons desses helicópteros, abusando das frequências graves e reforçando a sensação de ameaça constante. Aliás, este é um exemplo perfeito de ser econômico no uso de recursos: com certeza foi muito mais barato criar helicópteros dessa maneira.
- Nas cenas escuras, quando a câmera "falha", aí, sim, Oriol e sua equipe se divertem a valer. Utilizam os seis canais disponíveis para criar verdadeiras narrativas sonoras. Por exemplo, quando um grupo perseguido pelos zumbis consegue chegar à cobertura, eles entram numa área completamente sem luz. São 40 segundos de tela totalmente escura. E quem nos "conta" tudo o que acontece é o som. E o trabalho de Oriol é competentíssimo: conseguimos entender perfeitamente o que se passa. Este tipo de situação, criada pelo diretor ou roteirista, é um verdadeiro presente para um sound designer criativo.
- As ambiências criadas são outro destaque. Apesar de todo o filme praticamente se passar dentro de um prédio de apartamentos, vários ambientes distintos foram criados, moldando atmosferas peculiares para cada local. Mas o ponto alto é na malfadada cobertura. Lá, ouvimos o que é comumente chamado de eerie – seria uma espécie de "ambiência de casa mal-assombrada". Eeries geralmente são criados por meio de sintetizadores e efeitos ruidosos, e no caso de [REC] não traz nenhuma novidade. O interessante é como esse eerie consegue se integrar de forma totalmente orgânica ao que está sendo mostrado. E somado à gravação da fita de rolo que os personagens encontram, o efeito é simplesmente arrepiante! Agora, excepcional mesmo é o que vem a seguir: essa atmosfera, esse eerie simplesmente desaparece quando o cinegrafista liga a visão noturna da câmera. Aliás, o desenho de som como um todo muda bastante. As vozes dos personagens se abrem no espectro sonoro, podemos ouvi-las também nos canais esquerdo e direito. É como se tivessem sido transportados para outra dimensão. Pura linguagem! Puro conceito de som (este artifício será repetido em [REC] 2)!
- Não dá para deixar de citar as "vozes" e gritos dos zumbis. Apesar de não fugir ao lugar-comum de diversos outros zumbis de muitos outros filmes, esses sons se destacam pela forma como são utilizados off-screen, ajudando a criar a tensão necessária. Decepcionante mesmo é o som escolhido para ser a "voz" da menina Medeiros: muito estridente, é mais irritante do que assustador.
[REC] 2
Aqui temos uma situação bem mais complexa. Três POVs: policiais, garotos e a mesma câmera de TV. Vamos aos fatos:
- Quando acompanhamos os policiais, o som já é bem mais aberto em relação ao primeiro [REC]. Supõe-se que os policiais estão usando câmeras mais sofisticadas e, consequentemente, permitem uma liberdade maior do desenho de som. Escutamos inclusive a respiração do cinegrafista nos canais traseiros. Os diálogos são ouvidos nos cinco canais. Já é uma abordagem completamente diferente comparado ao primeiro filme.
- Os helicópteros continuam lá, invisíveis e onipresentes, mas tecnicamente soam bem mais realistas.
- Em relação às ambiências, aqui vemos/ouvimos uma curiosa inversão: o eerie é bem mais pesado e presente nas escadarias e apartamentos. Na malfadada cobertura, é quase inaudível. O interessante é que existem muito mais camadas de sons compondo todas essas ambiências. Na cobertura, conseguimos ouvir, por exemplo, uma goteira que inexistia no primeiro filme. (Possível conclusão: polícias investem bem mais que redes de TV na hora de comprar microfones.)
- A câmera dos garotos já é mais parecida com a da equipe de TV: boa parte dos sons concentrados no canal central e muito pouco nos demais, com exceção do subwoofer, que é bastante utilizado. Exceção também é na sequência de tiros vindos da janela. Aliás, a escolha dos sons desses tiros é um grande mérito de Tarragó. Fogem do padrão de tiros made in Hollywood e impressionam na maneira que foram desenhados e mixados.
- Outro destaque é novamente o uso da visão noturna da câmera de TV. Aqui, a utilização do efeito de reverberação novamente "transporta" os personagens para outra dimensão. Apesar de repetir a ideia do primeiro filme, não deixa de ser conceitualmente genial o uso desse recurso.
- As vozes do garoto possuído são também um ótimo exemplo de uso de efeitos de distorção e alteração tímbrica, assim como a adição de várias camadas de vozes sussuradas no surround.
- A cena final, entre Angela e Owen, é talvez a primeira vez que ouvimos música na forma não-diegética. Muito bem utilizada, ela reforça o clima macabro da cena.
Resumindo, [REC] 2 possui um trabalho de som bem mais complexo e detalhado, cheio de camadas e nuances. Provavelmente, o departamento de pós-produção de som teve um orçamento maior. Ou um prazo maior. Ou ambos. E isso fez toda a diferença.
Os dois filmes fazem parte de uma quadrilogia. [REC] 3 Genesis está para estrear em março, na Espanha. Agora dirigido somente por Paco Plaza e, pelo que aparece no trailer, numa abordagem completamente diferente em relação aos dois primeiros longas. E também com uma equipe de som totalmente nova. É esperar para ver. E ouvir!