Banish the black, burn the blue, and bury the beige. From now on, girls, think pink!
Cinderela em Paris, de 1957, é um filme que reúne múltiplos talentos em sua execução. O diretor é Stanley Donen, que cinco anos antes havia entregue Cantando na Chuva, um dos melhores musicais de todos os tempos. Os atores principais são Audrey Hepburn, que se estabelecia como estrela após o sucesso de A Princesa e o Plebeu e Sabrina, e Fred Astaire, já veterano. A figurinista é Edith Head, figura mítica da profissão, com nada menos que 35 indicações ao Oscar no currículo, das quais ganhou oito estatuetas.
Os créditos de abertura apresentam belas fotos de Richard Avedon, fotógrafo de moda que prestou consultoria ao filme e que inspirou o personagem principal.
A trama deste musical é uma história de “patinho feio”: Audrey Hepburn é Jo Stockton, uma livreira que não se importa com a aparência, mas que é apontada como modelo em potencial pelo fotógrafo Dick Avery (Astaire), que convence a editora da revista Quality, Maggie Prescott, a levá-la para Paris. Quem interpreta esta última é Kay Thompson, instrutora de técnica vocal da Paramount, que raramente aparecia diante das câmeras.
Maggie está insatisfeita com a edição da revista que está sendo preparada e se preocupa com a “mulher americana, que está lá, nua, esperando que eu diga o que ela deve vestir”. Todas as trabalhadoras do mundo editorial vestem cores neutras. Para salvar a revista, Maggie decide que a nova cor da moda será o rosa.
Logo em seguida, as assistentes do escritório passam a vestir-se de maneira monocromática, todas de rosa, aderindo prontamente ao mando da editora. É interessante perceber que ela não faz o mesmo: dita a moda, mas não necessariamente a segue. A sequência musical é viva e memorável.
Dick Avedon está preparando um ensaio fotográfico com Marion, interpretada por Dovima, grande modelo da época. Para alterar a aparência clássica de Fred Astaire, conferindo-lhe um ar um pouco mais artístico, utiliza-se um lenço vermelho amarrado em sua cintura, ao invés de um cinto. Mas não há engano: ele não é um fotógrafo da boemia, e sim do establishment. Por isso jamais se veste de maneira totalmente informal.
Com a ideia de utilizar uma antiga livraria como cenário para as fotos, vemos Jo pela primeira vez, trabalhando no local escolhido. Quando a avistamos, o que vemos é um mocassim desgastado e meias grossas, além de uma saia longa, todos marrons. Sua roupa é completada por uma blusa preta de gola alta e uma espécie de colete longo e cinza. No trabalho, se veste apenas de não cores e com formas simples e antiquadas.
Por causa de sua figuração nas fotos de Marion, Jo é apontada como a nova face da revista Quality.
Já em Paris, Jo mostra-se conhecedora das últimas modas entre os intelectuais da época: ao ir para um bar, veste-se como uma autêntica beatnik, com calça cigarrete, blusa de gola alta e mocassim, todos pretos, acompanhados de meia branca. O movimento, tão alheio à moda mainstream, ainda assim possuía uma maneira de vestir fortemente codificada e padronizada. O ambiente é sempre cheio de fumaça de cigarro e as pessoas que o frequentam são apresentadas como sendo estranhas. Dick permanece deslocado com sua roupa excessivamente formal. A cena de dança que se segue é marcante e inspirou muitas obras posteriores.
Quando voltam para a pousada, ele veste uma capa com forro vermelho, providencial para execução da próxima dança, que emula uma tourada.
Após a sua transformação em modelo profissional, Jo veste o tom de rosa ditado pela revista, mostrando-se ainda manipulada por esse novo mundo em que adentra.
Em seguida, Dick e ela preparam o editorial para a revista. Todas as roupas vestidas por Audrey são criações de Hubert de Givenchy, estilista da marca homônima que vestia a atriz dentro e fora das telas. A aliança favoreceu ambos e alçou Hepburn a ícone da moda, lembrada especialmente com o “pretinho básico” da marca em Bonequinha de Luxo. As roupas exibidas mostram a variedade de criações da alta-costura e refletem a moda de então.
Clique na imagem para vê-la ampliada.
Jo escapa de sua agenda de atividades para conhecer o professor Emile Flostre (Michel Auclair), filósofo responsável pelo empaticalismo, corrente filosófica que a atrai. Dick e Maggie vão procurá-la e para isso também se disfarçam, com direito a golas altas pretas, boina e xadrez. Dick é extremamente controlador em relação a modelo.
De volta ao desfile, Jo veste mais alguns vestidos Givenchy. Ela não mais exibe o rosa da revista, mas a equipe que trabalha nos bastidores, incluindo Maggie, é que passou a se vestir de preto e branco, influenciados pela estética beatnik, mostrando que Jo se estabeleceu como modelo, dessa vez mantendo seu próprio estilo e influenciando os demais.
Mas o arco de desenvolvimento da personagem só termina com a confirmação do romance até então delineado, após desfilar trajando um vestido de noiva.
Cinderela em Paris tem bela fotografia, trajes bonitos e cenas de dança bem realizadas. Infelizmente, como Sete Noivas para Sete Irmãos, também dirigido por Stanley Donen, é prejudicado por um roteiro que se mostra datado e machista. Apesar disso, graças a tantos grandes talentos envolvidos, a execução é tecnicamente impecável. A leve crítica ao mesmo tempo ao mundo dos editoriais de moda e suas escolhas aleatórias e ao esnobismo da intelectualidade e do movimento existencialista, quer dizer, empaticalista, é divertida. Nessa lógica, o que é válido é o colorido escapismo provido pelos musicais da década de 50.
É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.