Aviso: este texto contém revelações de detalhes da trama do filme.
Seguindo a tendência dos últimos anos de filmes adaptados de contos de fadas, dia 29 de maio estreou no Brasil Malévola, que traz a história da Bela Adormecida contada através do olhar de sua vilã de mesmo nome. O diretor, Robert Stromberg, é um novato que anteriormente havia trabalhado com efeitos especiais e direção de arte; esta última em Oz: Mágico e Poderoso, com o qual o filme guarda certas semelhanças estilísticas. Sua (in)experiência transparece no resultado final, que possui um visual bastante coeso, mas uma direção claudicante. O figurino que Anna B. Sheppard criou para a protagonista não só remete à animação da Disney de 1959, como aprofunda a narrativa, criando um arco de desenvolvimento da personagem.
No começo da história, Malévola, ainda criança, é uma criatura mágica, que nutre profundo respeito pelo ambiente ao seu redor. Suas roupas são fluidas e tingidas em tons naturais de marrom e verde. Seus cabelos longos são mantidos soltos em torno de seus chifres. Corre e voa descalça e livre por Moors, sendo ela mesma um elemento da natureza.
Já crescida, defendendo as terras da presença humana, Malévola (Angelina Jolie) continua fazendo uso de modelagem fluida em tons esverdeados, com toques de amarelo. As formas são tradicionalmente femininas e os tecidos com aparência natural. Os cabelos seguem soltos e os pés descalços, mostrando a ligação que possui com a natureza. Sobre os ombros, utiliza um adereço composto por penas. Sua capa é tingida em degradê, mais escura próxima ao solo, e com bordas amarelas que serão referenciadas adiante.
Stefan (Sharlto Copley), o seu amigo de infância humano, volta a se aproximar após alguns anos de ausência, mas com a intenção de matá-la para herdar o trono. Fazendo uso de uma bebida para adormecê-la, não tem coragem de executar seu intento, mas arranca-lhe as belas asas, em uma metáfora bastante clara de um estupro. A agonia da personagem ao acordar fica patente em cada movimento, como se todos os seus músculos se contraíssem em dor lancinante. Confiara e fora traída. As ações que se seguem são motivadas pelo ódio que tal ato vil despertou nela e têm reflexo na sua forma de vestir.
Aqui o filme deixa claro a marcação do tempo em estações. Se sua infância fora um verão de belezas naturais, agora Malévola escurece tudo ao seu redor trazendo outono à tela. Seus trajes também escurecem. No batizado de Aurora, a filha de Stefan, aparece para amaldiçoar a criança, buscando vingança.
A roupa que utiliza tem como clara referência aquela que a personagem usa na mesma cena no desenho animado. Retiram-se os lampejos de roxo para manter o negro total. As golas duplas e pontiagudas também aparecem.
Malévola da animação dos estúdios Disney, de 1959.
O vestido agora não é mais solto e sim estruturado e arquitetural, com tecido de textura marcante e longa calda com detalhes em couro. Seus cabelos são contidos em um turbante apertado, com aparência de carapaça. Tudo marca a dureza da personagem neste momento.
O rei Stefan até então havia se vestido em tons frios: azul, cinza e prata, acompanhados de dourado. Após a maldição, consumido pelo medo, passa, também, a usar o preto como cor predominante e decai em aparência.
Já Malévola continua portando vestes negras, com acréscimo de elementos animalescos. Um de seus vestidos possui uma gola armada e plissada, com textura semelhante a penas e um pequeno crânio metálico adornando o decote.
Usa uma capa de veludo com degradê contrário ao anterior, escuro na parte superior e claro próximo ao solo, frisando sua completa ruptura com aquele passado. Sobre os ombros desta, um adereço composto por penas e garras, com uma espinha dorsal que desce-lhe pelas costas. Em outra cena, sua gola é composta por mandíbulas de algum animal. Texturas de pele também se fazem presentes nos detalhes. Mesmo seu turbante agora passa a ser composto por esse material, conferindo-lhe uma aparência viperina.
Embaixo: estudos de texturas de peles de animais para
adereços e adorno para ombros com gola e espinha dorsal.
Nesse meio tempo Aurora (Elle Fanning) cresce na floresta sob o olhar cuidadoso de suas três fadas-madrinhas, Flora, Fauna e Primavera. Em sua versão pequena, estas têm vestidos compostos por pétalas de flores, mas seus estilos e identidades cromáticas se traduzem em trajes adequados para sua versão humanizada, embora exuberantes demais para que pudessem passar como verdadeiras camponesas.
O mesmo ocorre com a princesa. Veste silhuetas retas e recatadas, mas com tecidos encorpados e ricos. As cores, em tons pastel, remetem àquelas utilizadas por suas madrinhas, que lhe servem de referência até então.
Seus trajes são inspirados nas pinturas de Ofélia de John William Waterhouse e nos vestidos usados no final no período medieval.
À esquerda: Ophelia (1894), de John William Waterhouse; à direita: croqui de traje de Aurora.
Com seu crescimento chega o inverno. Malévola novamente faz uso de elementos de origem animal, ao vestir uma capa com bordas e golas de pele e com grande volume para efeito dramático.
Já a capa de Aurora apresenta um tom escuro de verde e bordas amarelas, remetendo à jovem Malévola, e ligando-a ao seu passado.
Não é à toa que quando Malévola tenta desfazer a maldição que havia lançado, utiliza um traje nos mesmos tons amarelos. Ao falhar, retorna às cores escuras, que usará mesmo ao final do filme, quando a primavera marca a coroação de Aurora. Essa parece uma decisão incoerente em relação à narrativa feita através de suas roupas até então.
De qualquer forma o filme já é incoerente ao criar uma personagem livre e dona de si, que após sofrer violência terrível e ter seu corpo brutalizado, comete erros e tem sua redenção justamente na afirmação de um papel tradicionalmente tido como feminino, que é a maternidade. Dessa forma, a sexualidade que lhe é forçada (através da metáfora de violência), é contrabalançada pela santidade desse papel de mãe, em uma das dicotomias mais baratas de que se pode fazer uso para uma personagem feminina.
Apesar dos problemas de estrutura e mesmo de narrativa, a Malévola do filme é uma personagem construída de forma interessante e, desconsiderando-se as sequências finais, Anna B. Sheppard criou para ela, bem como para os demais personagens, figurinos ricos que ilustram de maneira clara sua jornada. O resultado final é um filme com elementos bonitos, que prendem o olhar em seus detalhes.
É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.