“O que você ganharia, passando por um escândalo?”
“Minha liberdade.”
A Época da Inocência é um filme que se destaca pela curiosa temática na filmografia do diretor Martin Scorsese. Após filmes como Taxi Driver, Touro Indomável e Os Bons Companheiros, aqui ele nos entrega uma história de amor trágica, que dizem ter clamado ser seu filme mais violento. Baseado no livro homônimo de Edith Wharton, a trama é realmente brutal no retrato de sentimentos intensos que não podem ser revelados. A figurinista Gabriella Pescucci opta pela composição realista do período, criando ambientação perfeita para o drama, na Nova York da década de 1870.
A história começa, muito apropriadamente, em uma ópera. Todos no teatro usam seus binóculos, mas não para ver melhor a peça e, sim, para observar uns aos outros. Newland Archer (Daniel Day-Lewis) quer anunciar seu noivado com May Welland (Winona Ryder). A prima desta, Condessa Ellen Olenska (Michelle Pfeiffer) acabara de chegar da Europa, separada do marido, gerando grande escândalo e, por isso, ele precisa apoiar a família da noiva, para que a reputação deles não seja manchada, garantindo que seu próprio casamento seja menos escandaloso. Trata-se de um mundo de regras, aparências e falsidades. Newland segue todas elas à risca, embora intimamente goste de pensar em desafiá-las.
May é jovem, bonita, não possui muitas opiniões próprias e é a esposa perfeita, moldada pela mãe e pela sociedade em torno dela. Ao início do filme, como moça solteira que é, tende a dar preferência às cores claras no seu vestir. Por vezes seus vestidos serão acrescidos de um detalhe em tule ao redor dos ombros, funcionando como uma espécie de véu que cria efeito etéreo, ressaltando sua inocência.
Era costume que moças solteiras vestissem branco ou cores muito claras em ocasiões sociais formais. Pode-se perceber isso na cena do baile na casa dos Beaufort.
Logo na primeira aparição, sabemos que Ellen será um contraponto a May: o contraste entre seu vestido azul vivo contra a alvura virginal do traje daquela já deixa tal fato patente. Ellen não está acostumada aos costumes conservadores de Nova York. Em certo momento, a narração fala que ela não sabia que em uma festa, por exemplo, uma mulher não podia se levantar para ir conversar com um homem, ato comum na Europa e inofensivo para ela.
Após ser apresentada a Newland, este passa a se sentir atraído pela sua forte personalidade e presença. Ela começa a vestir-se predominantemente em tons de vermelho, o que é sugestivo não só por ser uma cor que significa paixão, como também por ser bastante ousada para o período. Como frisou uma senhora em certo momento do filme, Ellen vestiu cetim preto no baile de sua apresentação à sociedade. Ela jamais se importou com as convenções sociais.
O cinema já possui um certo histórico de vestidos vermelhos usados como retrato de audácia de mulheres à frente de seu tempo e que foram punidas por isso. Jezebel (no filme homônimo de 1938), Scarlett O'hara (em E o Vento Levou, de 1939) e Anna Karenina (no filme de mesmo nome, de 2012) foram algumas, apenas para exemplificar.
Jezebel em imagem colorizada do filme de 1938,
Scarlett O'Hara, em 1939, e Anna Karenina, em 2012:
mulheres que ousaram querer ser livres em suas respectivas histórias.
É interessante notar que Anna Karenina e A Época da Inocência acontecem no mesmo período. Assim, percebemos a diferença entre um figurino estilizado (o primeiro) e um fiel à época (o segundo), com saia mais estreita, jaquetas justas e anquinhas.
Detalhe de quadro de Tissot, de 1873, e croquis representando a moda do período.
Passado o período de aproximação, quando Newland admite suas intenções, Ellen utiliza um vestido verde-água com detalhes em renda quase jovial. Muitas coisas se passam no plano do desejo e quase tudo fica subentendido com delicadeza e certo erotismo, como quando ele desabotoa a luva dela para beijar seu pulso, no interior de uma carruagem. Desde Gilda uma luva não era tão significativa.
May pode parecer alheia a tudo que acontece, mas isso não reflete a realidade. A narração explica que era costume que as mulheres usassem seus vestidos de casamento durante um ou dois anos depois de casadas, em eventos sociais. Ela nunca havia feito isso, até a noite decisiva em que garantiu a continuidade deste. Assim, o vestido acabou por marcar a estabilidade da instituição que representou.
"Dava menos trabalho seguir as tradições: não havia necessidade de tentar emancipar
uma esposa que não tinha a menor noção de que não era livre."
Ao decidir voltar para a Europa, Ellen aparece, pela primeira e única vez trajada em negro, como faria uma senhora casada mais velha, segundo os costumes. Assim, também, se marca o fim de sua liberdade.
O design de produção do filme como um todo é extremamente caprichado e destacam-se os quadros presentes nas casas de todos os personagens, que falam muito a respeitos deles. Ellen, por exemplo, possui muitos quadros impressionistas, muitos dos quais sequer haviam sido pintados à época, mostrando, mais uma vez, seu senso de vanguarda. A pintura, aliás, parece ser de grande influência na composição das cenas e na fotografia: cenas internas se aproximam da estética do Romantismo, enquanto externas referenciam (por vezes até mesmo diretamente) pinturas impressionistas. O figurino é apenas um elemento a mais nessa obra intensa, que conta com direção competente e execução primorosa.
É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.