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SEGREDOS DE SANGUE Vestindo o Filme

Às vezes você precisa fazer algo ruim para se impedir de fazer algo pior.”

O título original de Segredos de Sangue é Stoker. O nome é uma clara referência a Bram Stoker, autor do clássico Drácula, e entrega uma pista: embora eles não se façam presentes, pode-se dizer que é uma história clássica de vampiros,  retratando a solidão, a incompreensão da própria natureza e fazendo relação entre sedução e perigo. Em seu primeiro filme de língua inglesa, o diretor Park Chan-wook (Oldboy) constrói um imagético poderoso, com uso característico de cores de forma simbólica, mostrando total controle sobre sua obra. O figurino foi criado pela dupla Kurt Swanson e Bart Mueller, que assinam como Kurt & Bart. Seu trabalho torna-se ainda mais interessante quando percebemos que os próprios personagens relatam a importância que suas roupas possuem em certos momentos da história.

Stoker é o sobrenome da família que protagoniza a trama, que começa no 18º aniversário de India (Mia Wasikowska), quando ela e sua mãe, Evelyn (Nicole Kidman) recebem a notícia da morte de seu pai, Richard (Dermot Mulroney). A família vive de uma maneira tal, isolada em seu casarão com alguns criados e um vestir peculiar, distante do contemporâneo, que a história poderia ser ambientada em qualquer período até a década de 1950. Tudo é muito contido e a estética remete ao período gótico americano.

Já no enterro podemos perceber que mãe e filha são diametralmente opostas. Evelyn é uma mulher solitária, cujo marido aos poucos parou de lhe dar atenção para ocupar-se da filha. Usa um vestido justo com detalhes assimétricos na gola e um sapato de salto alto. Jovem e bonita, parece querer clamar ao mundo que ainda está viva. Já India sempre vai usar roupas que parecem trajes infantis de outras épocas: blusas soltas e saias em "A" com corte em viés ou pregas. Veste-se com austeridade, cores neutras e sempre busca a simetria, tanto nos trajes como no cabelo cuidadosamente partido ao meio, passando uma imagem de repressão. Usa sempre o mesmo sapato: um estilo “oxford” bicolor, que acreditava ganhar do pai todo ano em seu aniversário.

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Após o enterro, o misterioso e até então desconhecido tio Charlie (Matthew Goode), irmão mais novo de Richard, aparece. Veste-se de forma preppy, estilo dos mauricinhos americanos, relacionado a colégios e universidades caras, o que também transmite atemporalidade a sua aparência. Seu vestir é prontamente mencionado por pessoas no velório, pois não porta nenhum traje de luto e sua roupa contrasta com os demais.

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Os calçados de India na verdade eram presentes de seu tio: eram uma forma de Charlie criar uma conexão com a sobrinha e tentar controlá-la. Ao mesmo tempo significavam estabilidade e segurança para ela. Em determinado momento do filme, deita-se na cama com todos os pares que usou no passado ao seu redor, como um escudo ou um legado. Sua história e sua jornada de crescimento pode ser contada através dos sapatos, fato que ficará patente ao final do filme.

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Outro acessório importante na história é o cinto de Richard, que Charlie começa a usar. É perceptível sua inadequação, sobrando em comprimento. Quando, em certa cena, o retira, ouve-se perfeita e ampliadamente o couro deslizando sobre o tecido, como um animal rastejaria na relva para chegar a sua presa.

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Após o velório, India usa um vestido cinza e fala explicitamente a sua mãe, como que a recriminando, que está vestindo traje de luto e que no período vitoriano as viúvas faziam isso por pelo menos dois anos. A roupa estabelece um preciso código social.

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Mas Evelyn rapidamente vai se livrar do luto e passará a vestir roupas cada vez mais rosadas e mais translúcidas, abrindo-se diante do flerte de Charlie.

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Amarelo é a cor que vai aparecer desde o princípio, como um alerta do que está por vir, e, posteriormente, servirá de elemento importante na composição de determinadas cenas. Ela gravita em torno de India e aparece na forma de bolas de tênis que ela espalha na quadra nos créditos de abertura, na decoração do seu bolo de aniversário, nos ovos diante dela na mesa da cozinha, na fita da caixa de presente, apenas para citar alguns momentos.

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Amarelo vem a ser a cor característica do tio Charlie, que, ao chegar, veste um colete mostarda e, ao final da trama, vestirá um pulôver da mesma cor. Como um vampiro, ele jamais come e sempre aparece sem que ninguém perceba de onde ele veio. Como um vampiro, busca companhia para sua vida diferente das demais. Mas na verdade é menos perigoso do que parece: trata-se de um homem com motivações infantis, preso ao passado e por isso tão apegado a essa cor que lembra a infância. Em flashback, a cor marca momento definidor de sua história.

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Na escola, ao vermos os demais alunos com roupas comuns dos tempos de hoje, é que fica claro o quanto os Stokers estão deslocados temporalmente, com o contraste entre India e os demais. Quando se veste de verde, é como se carregasse parte de sua casa consigo.

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Ainda lá, na aula de arte, India não desenha o vaso de flores exposto como modelo e, sim, o padrão amarelo e vermelho que decora seu interior. A combinação se repete nos potes de sorvete e mesmo no seu lápis com a ponta coberta de sangue. O vermelho sempre tem o duplo significado de paixão e de perigo, que aqui caminham lado a lado, sempre vinculados a Charlie.

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Conforme a moral vitoriana, sexo aparece sinalizado como perigo (e vice-versa), como demonstrado pela aranha que sobe pelas pernas de India, para baixo de sua saia. Como criança que era, seus desejos estavam adormecidos. Mas após seu primeiro contato com a morte diante de seus olhos, encontra dor e êxtase. Sexo e morte se atraem na trama. E nesse momento é que deixa de lado sua camisola de algodão e usa uma camisola de seda. Sentiu que precisava vestir algo confeccionado no tecido, como explica à mãe, no quarto dela, com paredes em vermelho intenso.

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O desfecho da história é como o documentário sobre a natureza, que está passando na televisão ligada. Charlie acha que India já é adulta o suficiente e lhe dá um derradeiro sapato como presente pelo seu aniversário: um scarpin de salto alto vermelhado, assinalando ao mesmo tempo a maturidade sexual e o perigo; feito de couro de crocodilo, pois ele vê na sobrinha uma predadora pronta, como o réptil. Anteriormente ele havia dito: “nós temos o mesmo sangue”, e agora reafirma: “eu estava esperando por você”, querendo que ela veja tudo que poderiam compartilhar. Acontece que em um primeiro momento ela rejeita o presente, retornando à segurança de seu calçado preto e branco anterior.

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Só volta a vesti-lo quando percebe que está pronta para a caça, dessa vez por si mesma e não pela intervenção de um terceiro, despertando para seus desejos e abraçando o que seria sua verdadeira natureza.

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A natureza de India, contra a qual não precisa mais lutar, é construída sobre o legado de seus familiares. Com os cabelos e a roupa livres ao vento, encontrou sua maturidade e sua liberdade e seguirá seu caminho marcado em amarelo. As roupas construíram todo o simbolismo do despertar de sua vida adulta.

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“Assim como a saia precisa do vento para ondular, eu não sou composta por coisas que são somente minhas. Eu visto o cinto de meu pai atado ao redor da blusa de minha mãe e os sapatos que ganhei de meu tio. Esta sou eu. Assim como uma flor não escolhe sua cor, nós não somos responsáveis pelo que nós viemos a ser. Só quando percebemos isso é nos tornamos livres e se tornar adulto é se tornar livre”.

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Segredos de Sangue é uma fábula sobre crescimento. Plasticamente, o filme é belíssimo, de uma maneira que palavras não podem descrever. As roupas entrelaçam-se na narrativa, fato lembrado o tempo inteiro pelos próprios personagens. O figurino extremamente competente da dupla Kurt & Bart apenas coroa o controle que Park Chan-wook tem sobre a estética de sua obra, que é um trabalho audiovisual impecável.

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Sobre o autor:

É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.

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