A década de 1950 geralmente é vista como um período de glamour, em que as pessoas se vestiam com extrema elegância. O que essa interpretação esconde é que as sociedades ocidentais nessa época viviam uma série de opressões, que raramente são lembradas pelos saudosistas. Apenas um grupo diminuto de pessoas podiam desfrutar de uma vida plena.
A roupa feminina do período é marcada pelo chamado New Look, criado por Christian Dior em 1947. A silhueta, criada em Paris, era caracterizada por cintura marcada e saia volumosa, conotando padrões tradicionais de feminilidade. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a moda propagou-se para outros países, coincidindo com a época em que as mulheres de classe média, que haviam trabalhado nesse período, retornaram ao interior dos lares como donas de casa. (Para as mulheres de classes populares, não trabalhar fora jamais foi uma opção.) Com o término do racionamento de tecidos, as saias passaram a ganhar mais volume. Essa silhueta, juntamente com outras (como a saia lápis) marca a década de 50. Ela vai gradativamente ser substituída por uma forma mais trapezoidal, mas se perpetua até quase meados da década de 60.
À esquerda, primeiro exemplar do New Look de Dior, em 1947. Ao centro e direita, vestidos Dior de 1958. Clique nas imagens para vê-las ampliadas.
Diversas produções cinematográficas se passam nessa era, mas com interpretações diferentes sobre a realidade de então. Compararei aqui três produções que retratam a época, com suas respectivas visões do momento. Aviso: a análise contém alguns spoilers.
A Datilógrafa é um filme visualmente encantador, de 2012, dirigido por Régis Roinsard e com Charlotte David como figurinista. Passa-se em 1958 e a protagonista é Rose (Déborah François), uma garota que deseja sair de sua cidade do interior da França. O meio que encontra é ser secretária, mas ela é extremamente desastrada para a função. Seu chefe, Louis (Romain Duris), percebe sua habilidade na datilografia e resolve inscrevê-la em um concurso. Quando faz a entrevista de emprego, Rose utiliza um vestido branco e florido, campestre, indicador do lugar de onde vem, em contraste com as demais candidatas em trajes urbanos.
Rose não exatamente aspira ser secretária, apenas vê a profissão como uma chance de escapar do interior. Ao obter o emprego, passa a usar tons predominante cinzas. As cores neutras mostram que sua alma não está nas tarefas realizadas e ao mesmo tempo a ligam ao figurino de seu patrão. Mesmo nos concursos de datilografia, ela não tem a ambição de ser a melhor: sente-se satisfeita com o que conquistou. É Louis quem faz questão de que tenha seu melhor desempenho.
Quando ganha o campeonato nacional, Rose passa a encarnar seu nome como marca e a usar o rosa como cor predominante. A peça publicitária que grava para uma máquina de escrever nessa cor faz lembrar a sequência musical “Think Pink”, do filme Cinderela em Paris. A feminilidade tradicional é utilizada como elemento atrativo para o produto.
Ao final do filme, Rose conquista o campeonato mundial de datilografia, mas o feito é anunciado no momento em que Louis a beija, de maneira que o afeto dele ganha mais importância que sua vitória. Vestida completamente de rosa, Rose encarna o amor e estereótipo do feminino. O filme retrata com pretensa leveza um período em que mulheres como Rose dificilmente teriam autonomia e carreira, e em que apanhavam (como aconteceu com ela) por já possuírem experiência sexual. Mostra que para ela o amor de Louis sempre importou mais que sua própria realização pessoal. É uma visão que traz de volta como positivos e românticos valores que na verdade eram opressores.
Em A Vida Em Preto e Branco, filme de 1998 dirigido por Gary Ross e com figurino de Judianna Makovsky, David (Tobey Maguire) e Jennifer (Reese Witherspoon) são transportados através de um controle remoto de televisão para dentro de um seriado familiar de 1958, que se passa em uma pacata cidadezinha chamada Pleasantville. David parece ter dificuldade de se relacionar com os jovens de sua própria época, e o programa, de que é fã, funciona como um escapismo, um lugar que lhe apresenta pessoas e papéis seguros.
As mulheres aqui se vestem com estilo esporte americano, com vestidos rodados, pérolas e estampas florais. As adolescentes utilizam cardigãs e pulôveres com saias também rodadas e sapatilhas ou sapatos oxford com meias. Mas há um detalhe: tudo na cidade é em preto e branco.
As interferências que a presença dos dois irmãos provocam na trama, mesmo que sem querer, passam a alterar o próprio tecido da realidade do local. Amor, sexo, pintura, literatura, enfim, tudo o que desperta fortes emoções no ser humano é trazido a tona e, com isso, aparecem as cores. Primeiro acontece com alguns elementos isolados, mas, aos poucos, pessoas vão se tornando inteiras coloridas, em tons technicolor. Padronagens emergem. Vestidos mostram-se vistosos. Esposas já não esperam seus maridos com jantar em casa e passam a questionar a obrigação das atividades domésticas.
A cidade se divide entre os valores tradicionais, das pessoas que se mantiveram em preto e branco, e aqueles que experimentaram um mundo de sentimentos fora do planejamento. Cartazes contra a entrada das “pessoas de cor” são colocados em estabelecimentos comerciais, em clara referência à segregação racial legalizada que acontecia nos Estados Unidos na época. Os trajes coloridos marcam a despertar das emoções.
A sequência do julgamento em que as pessoas coloridas ficam isoladas no balcão da corte é uma clara referência ao filme O Sol É Para Todos. David e, posteriormente, os demais habitantes da cidade entendem que as mudanças são naturais e bem-vindas e as cores passam a fazer parte de tudo. No filme, a vida sexual pretérita de Jennifer é, de certa forma, julgada ao final. Mas por outro lado a questão do racismo é abordada através de metáforas, ainda que tangencialmente, e a liberação da mulher é posta através do questionamento de seus papéis tradicionais de gênero, e exemplificada na ação da dona de casa bem posicionada na comunidade que deixa seu marido em busca de amor, contra todas as críticas. O passado não é visto através de lentes cor-de-rosa, e alguma crítica, ainda que moderada, é feita ao saudosismo.
Já Hairspray, musical adaptado da peça homônima, dirigido por Adam Shankman e com figurino de Rita Ryack, se passa na Baltimore de 1962, quatro anos após os outros dois filmes. A moda apresentada ainda remete à década de 1950, mas é mais colorida e teatral, predominando vestidos bastante armados e com padronagens marcantes entre as adolescentes urbanas. Novamente é frisada a feminilidade tradicional, através das cores, modelagens e acessórios das meninas.
A protagonista é Tracy Turnblad (Nikki Blonsky), uma garota gordinha que sonha em dançar no programa voltado para o público adolescente local. Mais uma vez, aqui são colocadas questões sobre o racismo e a segregação racial, pois a emissora de TV passa a separar pessoas negras de pessoas brancas na programação. Mesmo os bailes das escolas são segregados (fato que ocorre até hoje em certas localidades dos Estados Unidos).
No filme, as cantoras usam roupas que remetem ao trio The Supremes, grupo da Motown que marcou a época. Já a apresentadora Motormouth Maybelle (Queen Latifah) veste trajes de uma verdadeira diva, com muito brilho, plumas e acessórios grandes.
Maybelle e Tracy unem-se em passeata para lutar pelo fim da segregação.
Ao final, com um programa de televisão em que todos dançam, Tracy aparece vestindo uma roupa anacrônica: vestido com comprimento minissaia e estampa mod (com padronagem geométrica) e botas brancas de cano longo. A minissaia viria a ser inventada pela britânica Mary Quant em 1964 e as botas brancas se popularizariam ainda depois. Mas a opção pelo uso dessas roupas junto ao final otimista serve para apontar para o futuro, marcando a transição para uma nova etapa da sociedade, em que direitos passariam a ser reivindicados por diversos grupos oprimidos naquele momento.
Hairspray é um filme que mostra a beleza estética do passado, mas se atreve a mostrar (mesmo que de forma leve) o impacto do racismo naqueles que viviam o período, finalizando com uma mensagem positiva, ao mesmo tempo em que avança para os nossos tempos, em que padrões de beleza e magreza estritos são cobrados, permitindo que sua protagonista conquiste o galã ao final.
Nessa breve comparação entre representações de um mesmo período, percebe-se que, ao olharmos para o passado, podemos enxergar as sociedades de então através de diversas lentes, com muitas possibilidades de interpretações, e que o saudosismo por vezes pode enganar o espectador, levando-o a não perceber as relações invisibilizadas da época retratada.
É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.