Aviso: este texto contém revelações de detalhes da trama do filme.
Darren Aronofsky, o diretor de Cisne Negro, é um obcecado pela obsessão. Ela se faz presente em cada um de seus trabalhos, com maior ou menor destaque. Aqui, auxiliado pela figurinista Amy Westcott, ele constrói o mundo de Nina, completamente entregue à dança. Westcott trabalhou com uma paleta de cores restrita, usando o rosa, o cinza e o preto para contar a história da personagem principal e de sua obsessão, realçando as etapas de sua jornada e sua evolução, com uma estética que rapidamente virou referência nas coleções de moda lançadas após o filme. É interessante notar que Cisne Negro ganhou os prêmios de Melhor Figurino Contemporâneo e Melhor Direção de Arte em seus respectivos sindicatos, mas sequer recebeu indicação a essas categorias no Oscar.
Croquis de Amy Westcott. Clique na imagem para ampliá-la. Fonte: ClothesOnFilm.com
Além disso, houve certa polêmica à época do lançamento, pois a grife Rodarte, das irmãs Kate e Laura Mulleavy, clamou coautoria de quarenta trajes. A esse respeito, Westcott afirma que a marca ajudou em sete peças (apenas os figurinos principais usados na peça), e sempre com sua supervisão e de Aronofsky, afinal, segundo ela, é papel do figurinista saber cada ponto que aparecerá em cena, tendo ou não desenhado a peça.
Croquis de Kate Mulleavy, de Rodarte. Clique na imagem para ampliá-la.
Nina (Natalie Portman) é uma bailarina extremamente dedicada, com uma rotina rígida de ensaio e treinamento. Mora com sua mãe, Erica (Barbara Hershey), uma ex-bailarina que largou a profissão quando ficou grávida. Sua vida é bastante regrada. A relação entre as duas é de amor, mas, ao mesmo tempo, de repressão. Erica controla todos os detalhes da vida da filha, do seu café da manhã ao desempenho na dança, tentando se realizar através dela. Nina, por sua vez, cresceu insegura sob as asas da mãe e não amadureceu em diversos aspectos: seu quarto ainda é inteiramente rosa e repleto de bichinhos de pelúcia, ela nunca namora nem sai de casa e não consegue expressar seus desejos. Na parte inicial da trama, a paleta de cores de Nina se resume a rosa e cinza claros, pontuados por branco.
Enquanto ensaiam, fica claro o contraste de Nina com os demais bailarinos do corpo: todos se vestem de cinza e preto, um indicativo de que se encaminharam para a vida adulta, enquanto ela ainda utiliza o rosa que geralmente as meninas usam quando crianças nos ensaios, destacando-se em meio aos demais.
Em contraponto a Nina, nós somos apresentados a Lily (Mila Kunis), uma bailarina que não possui o mesmo primor técnico, mas dança com paixão e expressa livremente sua sexualidade. Lily jamais se vestiria de rosa: sempre aparece de preto com o cinza como cor complementar. O preto, aqui, mostra que é segura de si.
Erica, que domina a vida pessoal de Nina, também só veste preto. A cor adquire uma significação de domínio, seja de si ou de outrem.
Nina obtém o papel de dupla protagonista na peça O Lago dos Cisnes. Thomas (Vincent Cassel), o diretor, não tem dúvidas de que ela consegue interpretar Odette, a jovem inocente que é encantada por um feiticeiro e transformada em um Cisne Branco. Mas o desafio é conseguir fazê-la interpretar Odile, o Cisne Negro que seduz o príncipe para que ele não quebre o feitiço através de seu amor. Nina não consegue seduzir, nem se se entregar à dança a não ser através da técnica. Quando começa a ensaiar o Cisne Negro, ela passa a usar cinza como sua cor predominante. Está tentando se erguer acima de suas inseguranças, mas ainda não está em pleno domínio de si.
O primeiro momento em que Nina usa preto é quando sai à noite com Lily. Esta lhe empresta uma regata dessa cor, utilizada sobre outra blusa rosa (pois por dentro Nina ainda mantém a insegurança), e tenta ensiná-la a soltar-se. Ironicamente, quando está drogada e fora de si é que Nina extravasa seus reais desejos e também liberta sua sexualidade. No outro dia, ela aparece para ensaiar usando novamente uma peça da cor, que passa a utilizar nos ensaios seguintes.
Ao descobrir que Lily é sua substituta, Nina desestabiliza-se e, novamente, torna-se insegura e fragilizada, voltando a usar seu casaco rosa, desenhado por Amy Westcott. Visita Beth (Wynona Ryder) no hospital. O quarto dela também é todo em tons de rosa, refletindo os próprios medos de Nina. A queda de Beth por conta de sua ascensão agora a fazem pensar sobre sua possível queda e substituição. Ela acredita que não é nada e que não vai conseguir fazer o Cisne Negro com sucesso e por isso retoma o modo infantilizado de se vestir.
Desde o início do filme, nós vemos Nina através de reflexos, em diversos espelhos e mesmo no vidro da janela do metrô. (Algumas dessas cenas já apareceram em imagens acima). Nina é sempre da maneira como alguém a vê e não ela mesma (mesmo que esse alguém seja justamente ela). Mas esse é o momento em que seu estado psicológico está completamente quebrado, o que é mostrado através dos reflexos fragmentados no espelho quando chega em casa.
Chega o dia da grande estreia. Nina sobe ao palco, nervosa, no primeiro ato. Dança o Cisne Branco com sua ótima técnica, mas erra. No intervalo, reúne as forças para matar seus demônios interiores e para mostrar que ela é, sim, a bailarina certa para o Cisne Negro, por mais que muitos (e ela mesma) tenham tido dúvidas. Nina faz uma grande apresentação: ela é o Cisne Negro. O traje emplumado, a coroa e o véu apenas realçam sua atuação, de maneira que não hesita em arrancar o último ao sair do palco, sem perder a confiança, pois não precisa mais da fantasia para sê-lo. Quando o ato termina, arqueia o corpo para trás e suas sombras não mentem: ela adquiriu asas.
O último ato é a redenção da personagem. Ela chora ao perceber que aquele vai ser seu último momento no palco, mas retorna para continuar o espetáculo. Com seu traje branco, com a pureza da mais bela arte, ela é apenas maculada pelo próprio medo que teve no passado. No canto do cisne de sua performance, Nina alcança a almejada perfeição.
"Eu senti. Perfeito. Foi Perfeito."
Nota do editor: a partir desta edição, a coluna passa a se chamar Vestindo o Filme.
É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.