É muito comum ouvirmos comentários elogiosos a figurinos de filmes de época recheados com grandes e belos vestidos e filmes de fantasia que extrapolem os limites da nossa imaginação. Mesmo as grandes premiações, com exceções das específicas da área, geralmente tem entre seus indicados apenas filmes que se enquadram nesses dois grupos. Figurinos masculinos ou figurinos contemporâneos raramente despertam o mesmo tipo de comoção. Trabalhá-los significa se entregar a sutilezas que podem passar despercebidas por grande parte do público. Um belo exemplo é O Espião que Sabia Demais, mistério de espionagem de 2011 adaptado do romance de John le Carré, dirigido por Tomas Alfredson e com figurino assinado por Jacqueline Durran.
A história se passa em Londres durante a Guerra Fria, na década de 70. Antes de morrer, o líder de um grupo de investigação, Control (John Hurt), revela a suspeita de que um de seus espiões de gabinete seja um infiltrado, passando informações sigilosas para a União Soviética. George Smiley (Gary Oldman) é trazido de volta de sua aposentadoria para investigar os suspeitos. Os personagens principais são exclusivamente masculinos, mas Durran trabalha suas roupas de maneira que cada um tenha uma estética diferenciada. A paleta de cores é bastante restrita: aqui, os anos 70 não são feitos de cores fortes e estampas psicodélicas. Tratam-se de senhores de meia idade, com ternos de outras décadas e tonalidades escuras de cinza, marrom e azul-marinho, que casam com toda a ambientação cinzenta e nebulosa. Tudo parece indicar um período de dúvidas, desconfortos, suspeitas e poucas alegrias.
Control aparece algumas vezes e sempre mostra que está à vontade em seu local de trabalho. Certa hora, sua gravata tem uma estampa que remeta à textura da espuma de isolamento acústico da sala de reuniões. Em outro momento, seu terno é da cor das paredes da sala onde toma decisões. Suas roupas dialogam com sua labuta. Sua casa aparece caótica e, quando está nela, ele veste roupão e usa o cabelo despenteado, mesmo quando recebe visitas. Sua vida é seu trabalho e é nele que se mostra à vontade.
Smiley é um homem sério e dedicado às suas tarefas. Suas roupas, sisudas, podem ter sido adquiridas em qualquer momento nas duas décadas anteriores e não demonstram nenhum tipo de preocupação em expôr sua personalidade. Não é um homem afeito a mudanças, como fica claro. Sempre veste terno completo (calça, colete e blazer) cinza escuro e um sobretudo claro, além de seus marcantes óculos de aros grossos.
Seu ajudante na investigação, Peter Guillam (Benedict Cumberbatch), é mais jovem e se permite algumas indulgências em relação à moda. Suas calças são boca de sino, seus ternos tendem a ser em cores mais claras e utiliza gravatas azuis claras combinando com o lenço da lapela. Visivelmente ele se preocupa com a própria imagem e não se abstém desses detalhes, mesmo que todos ao seu redor o façam.
Onde o trabalho de Durran fica mais interessante é na composição dos suspeitos. Todos são homens do serviço secreto: precisam ser estáveis e fiéis ao seu Estado, rigorosos e constantes. Uma maneira utilizada para demostrar isso é a partir de suas vestimentas, que não possuem variações na forma, embora cada um siga um estilo que reflita sua própria individualidade. Mas um deles deve ter autoconfiança o suficiente para aceitar o papel de agente duplo e ao mesmo tempo ter uma flexibilidade na forma de agir, adaptando-se e variando conforme as situações, para garantir que não seja descoberto.
Aviso: a partir deste momento, esta coluna apresentará revelações do enredo, já que analisarei a forma como o figurino revela o infiltrado.
Roy Bland (Ciarán Hinds) é o mais calado entre os suspeitos. A única característica forte dele é sempre usar insípidos conjuntos de calça social e blazer marrons, com gravatas da mesma cor, sem nenhum tipo de variação.
Toby Esterhase (David Dencik) mantém-se fiel ao hábito de sempre utilizar gravatas borboletas, apresentando um visual retrô.
Percy Alleline (Toby Jones) é mais extravagante e sempre aparece vestindo camisas com padronagens listradas e gravatas com estampas contrastantes.
Assim, por mais mais que os três se vistam de maneira formal, cada um tem uma maneira diferente de lidar com o traje de trabalho, mas se mantêm sempre dentro de um padrão.
E aí chegamos a Bill Haydon (Colin Firth). Haydon aparece em um flashback em uma festa em que está usando uma gravata do mesmo tom de vermelho do vestido de Ann, esposa de Smiley, demonstrando uma ligação maior entre os dois. Ao longo da trama utiliza eventualmente peças que sobressaem-se no conjunto: gravata com estampa paisley, meia vermelha ou uma botina no lugar de sapatos. São detalhes que deixam transparecer uma certa ousadia. Mas ele não mantêm um padrão determinado como os demais: ora veste terno completo, ora aparece sem colete; às vezes está de marrom, às vezes cinza. Não há uma cor ou um corte que o represente especificamente. A cada cena seu estilo muda, sendo apenas pontuado por algum elemento mais chamativo. Ao final, quando descobrimos que ele é o infiltrado, tudo faz sentido, pois essa é a maneira de marcar a sua falta de comprometimento.
Dessa forma, Jaqueline Durran, que já se mostrou competente em obras como Desejo e Reparação e, mais recentemente, Anna Karenina, consegue imprimir suficiente diferenciação entre personagens que, a um primeiro olhar, podem parecer muito parecidos e ainda demostrar, através da forma como lidam com a estabilidade de suas próprias imagens, aquele que não é fiel ao Serviço Secreto. É deveras um trabalho feito de sutilezas.
É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.