Apesar de muitos protestos, o Belas Artes, um dos mais antigos e mais tradicionais cinemas de arte de São Paulo, está fechado há quase um ano por problemas relacionados ao aluguel do imóvel onde é situado. Uma possível ação de tombamento histórico está sendo analisada há muito tempo, mas se encontra congelada no momento. O fechamento do Belas Artes abriu os olhos da população para um processo que já ocorre há um bom tempo no Brasil: o fim das salas de cinema de rua.
Nesta edição da coluna Que Cinema é Esse?, investigamos como já foi e como está a situação das salas de cinema de rua do país, e, principalmente, que impactos a sua quase extinção teve na cultura brasileira e no cinema nacional. Para entender um pouco esse longo processo, e tendo a cidade Belo Horizonte como base, entrevistamos Bellini Andrade, diretor do documentário em produção Metrópoles, que investiga os espaços que abrigavam os antigos cinemas de rua da capital mineira e a memória que eles despertam, e Pedro Olivotto, diretor do Usiminas Belas Artes, atualmente o único cinema comercial de rua de BH.
O auge, a decadência e os shoppings centers
De acordo com o livro O Fim das Coisas, de Ataídes Braga, a primeira sala de cinema de Belo Horizonte foi inaugurada no Teatro Paris, em 1906, nove anos após a fundação da capital. Desde então, as salas de cinema em BH foram crescendo, com cinemas em bairros, mas, principalmente, um grande aglomerado de cinemas na região central. Muitos deles se tornaram marcos da cidade, como o Odeon, o Glória, o Metrópole, o Pathé e o Cine Brasil, tendo seu auge entre as décadas de 30 e 60.
Muitas dessas salas de cinema possuíam capacidade para 800 pessoas, algumas superavam os mil assentos. O cinema era tido como uma forma de socialização que não se vê hoje, como explica Pedro Olivotto: “O cinema de rua era o programa em si, era sair de casa para ir ao cinema, frequentar o templo da imagem, o templo do cinema. As pessoas se preparavam, se organizavam, iam acompanhadas, tinha uma socialização que o shopping não promove. Acho que é uma perda enorme em termos culturais”.
A decadência começou na década de 70, por diversos motivos: a chegada da televisão, do VHS e, principalmente, como apontado pelos dois entrevistados, o crescimento da metrópole, que traz consigo problemas sociais e um inchaço populacional que as grandes salas não puderam suportar. “É uma fatalidade que aconteceu no Brasil e em boa parte do planeta, com a especulação imobiliária, os problemas sociais que os centros das grandes cidades carregam, o problema de frequência, o problema da violência etc. E também pela dimensão das antigas salas de cinema. Hoje, no mundo inteiro, a quantidade de filmes lançados está em torno de mil por ano. Uma grande sala de cinema não dá giro aos títulos que são lançados anualmente, de modo em que elas deveriam ter sido transformadas em múltiplas pequenas salas”, afirma Olivotto.
A especulação imobiliária começou a ocupar os espaços dos cinemas, muitos privilegiados por serem de grande porte e localizados em grandes centros, além de já serem pontos conhecidos pela população. Andrade explica que na mesma época houve o crescimento das igrejas evangélicas, que começaram a ver nas grandes salas espaços ideais. A maioria dos cinemas de rua se transformou em igrejas, mas alguns se tornaram sacolões, estacionamentos e outros tipos de estabelecimentos.
E quem são os responsáveis pelo fim dos cinemas de rua? Andrade e Olivotto concordam que a falta de intervenção do poder público é um dos principais fatores, como afirma o diretor do Belas Artes: “É o maior dos problemas. Acho que faltou completa visão do poder público com relação à importância do cinema na estruturação da cultura de um povo, de um país, de uma nação. O Brasil teve um fechamento das salas do interior porque o cinema foi invadido pela televisão, filme na TV e depois na TV a cabo, e não teve poder público que incentivasse". E completa: "O Brasil hoje sofre as consequências de um investimento exagerado e maciço na produção e de uma falta de atenção às salas de exibição”.
No começo da decadência, em 1975, o país contava com 3.276 salas, quase mil a mais do que temos hoje. No entanto, muitas dessas antigas salas passaram a exibir filmes pornográficos. Em 1985, em Belo Horizonte, havia 18 cinemas em funcionamento - destes, 12 exibiam filmes pornográficos. E foi na virada da década de 70 para a de 80 que os cinemas começaram a migrar para os shoppings centers, que ofereciam a segurança e conforto que os cinemas de rua já não estavam mais sendo capazes de oferecer.
Impacto cultural
Com a mudança dos espaços, mudou o modo de fazer filmes e de assisti-los. Por consequência, mudou também toda a configuração cultural da sociedade em relação ao cinema. Ambos os entrevistados afirmaram que, devido ao shopping ser um grande centro de convívio e de consumo, com lojas, alimentação e diversas outras atividades, o cinema também se transformou em um ato de consumo, ou nas palavras de Andrade: “O cinema virou coisa de consumo, o templo de consumo”.
Uma pesquisa recente do Datafolha demonstra que quase metade dos entrevistados em todo país não são frequentadores de cinema: a maioria prefere assistir a filmes em DVD e na TV Aberta, e mais da metade prefere assistir a filmes dublados. Para Pedro, isso é um sinal da banalização da cultura que o shopping center promove: “Veja, se os cinemas ficam cada vez mais confinados nos shoppings e o shopping, sem dúvida nenhuma, é a representação de um puro entretenimento e consumo, evidentemente que houve também uma banalização cultural, e a banalização cultural propicia a dublagem. A legendagem é muito mais exigente: para você ouvir o som original ela exige mais, e ela tangencia muito mais uma postura cultural e cívica, porque você vê a obra no original. Mas o shopping é a banalização de toda forma de consumo, inclusive o cinema, e banalizar mais o cinema do que dublar, não é possível”.
A mesma pesquisa demonstra que o público assiste a mais filmes estrangeiros do que nacionais e que o grau de interesse pelo cinema nacional está de "mediano" para "pouco".
Reflexo no cinema nacional
Com um impacto tão grande na cultura cinematográfica, houve também impacto no cinema nacional? Números da Ancine demonstram que, na década de 70, quando tínhamos muitas salas de cinema e quase a totalidade delas em cinemas de rua, os filmes nacionais que ultrapassavam a marca de 2 milhões de espectadores girava entre três a quatro por ano. Durante a década de 90, este número baixou para menos de um por ano, e só voltou a aumentar na década de 2000 (como já demonstramos na edição especial do Cinema da Retomada).
Para Olivotto, o principal motivo da queda de público do cinema brasileiro foi realmente o período Collor, que acabou com todos os investimentos na área cinematográfica. Já hoje, o problema é a falta de telas: “É um país completamente vazio de telas. Por isso não se pode falar que o brasileiro não gosta de cinema brasileiro, que o brasileiro não gosta de cinema estrangeiro... Não gosta de cinema porque não tem acesso, não tem porque ir a cinema, não tem aonde ir ao cinema. O cinema brasileiro, além de enfrentar uma carência de telas, enfrenta uma concorrência muito maior do que existia antes, e com o Poder público começando a atuar há muito pouco tempo”.
A opinião de Olivotto faz sentido já que a pesquisa do Datafolha demonstra que 56% dos entrevistados avaliam os filmes nacionais de hoje como "ótimos/bons" e 62% acreditam que a qualidade desses filmes melhorou nos últimos anos. No entanto, Pedro também acredita que enquanto a predominância dos shoppings existir, a preferência de exibição continuará sendo para filmes estrangeiros: “O shopping é uma cultura de colonizador. As redes que os operam são redes de capital estrangeiro. Pouquíssimas redes de capital nacional operam em shopping”.
O panorama atual
Hoje, apenas 17% das salas de cinema do país não funcionam em shoppings, sendo que, neste percentual, além dos cinemas de rua, estão os que não têm localidade conhecida, como os cineclubes. Olivotto acredita que, atualmente, o cinema de rua só consegue se manter através do cineclubismo e de patrocinadores, mas tem esperança de que a lógica do shopping center esteja se esgotando: “Acho que começa a haver, hoje, como por exemplo, na França, principalmente, certo cansaço da cultura do shopping. O cinema de rua volta aos poucos a aparecer e o processo cineclubista volta, aos poucos, a ganhar força no mundo inteiro”.
Para finalizar, compartilhamos o poema O Fim das Coisas, de Carlos Drummond de Andrade, escrito após o fechamento do cinema Odeon, na década de 20, e que inspirou o livro de Ataídes Braga:
“Fechado o Cinema Odeon, na Rua da Bahia.
Fechado para sempre.
Não é possível, minha mocidade
fecha com ele um pouco.
Não amadureci ainda bastante
para aceitar a morte das coisas
que minhas coisas são, sendo de outrem,
e até aplaudi-la, quando for o caso.
(Amadurecerei um dia?)
Não aceito, por enquanto, o Cinema Glória,
maior, mais americano, mais isso-e-aquilo.
Quero é o derrotado Cinema Odeon,
o miúdo, fora-de-moda Cinema Odeon.
A espera na sala de espera. A matinê
com Buck Jones, tombos, tiros, tramas.
A primeira sessão e a segunda sessão da noite.
A divina orquestra, mesmo não divina,
costumeira. O jornal da Fox. William S. Hart.
As meninas-de-família na platéia.
A impossível (sonhada) bolinação,
pobre sátiro em potencial.
Exijo em nome da lei ou fora da lei
que se reabram as portas e volte o passado
musical, waldemarpissilândico, sublime agora
que para sempre submerge em funeral de sombras
neste primeiro lutulento de janeiro
de 1928”.