Se falar sobre cinema nacional já é falar para um público menor do que o dos blockbusters norte-americanos, imagine então falar sobre documentários nacionais? Quantos de seus filmes preferidos são documentários? E quantos são documentários brasileiros?
Conversei com Carla Maia (pesquisadora pela UFMG, organizadora do forumdoc.bh e co-diretora do documentário Roda) e com Leonardo Souza e Daniel Accioly (diretor e produtor, respectivamente, do documentário Mais de Três Foi o Diabo que Fez) para falar sobre a produção de documentários no país, a aceitação do formato perante o público, como esses filmes chegam ao público, entre outras questões.
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O documentário sempre esteve presente na história do cinema, conforme Carla lembra: “O cinema nasceu documentário, quando a primeira câmera registrou o primeiro trem [A Chegada do Trem na Estação, dos irmãos Lumiére], digamos assim. Por isso, claro que ele é importante para o cinema, é o documentário que lança o cinema no mundo. Mesmo num filme de ficção, a potência documentária está nessa relação com o mundo e com o outro. Essa abertura ao que vem do outro, ao que não pode ser controlado nem roteirizado é o que me interessa no documentário”.
E o que interessa à Carla também interessou aos cineastas brasileiros desde o princípio. Segundo Gustavo Soranz Gonçalves, em seu artigo Panorama do Documentário no Brasil, as primeiras exibições no país ocorreram ainda no final do século 19, com pequenas produções que mostravam a Baía de Guanabara e outras belezas regionais. Esses filmes ficaram conhecidos como “tomadas de vista” e duraram pela primeira década do século 20, seguida de mais 20 anos marcados por filmes etnográficos realizados por antropólogos.
Entre os nomes que marcaram o documentário no Brasil, temos o cineasta mineiro Humberto Mauro como um dos precursores. Durante os mais de 30 anos em que dirigiu o INCE - Instituto Nacional do Cinema Educativo – Mauro realizou mais de 300 curtas educativos, marcados pelo caráter didático aliado ao seu estilo único.
Mas foi Eduardo Coutinho quem realizou um dos principais marcos da história do documentário nacional: Cabra Marcado Para Morrer, sobre o assassinato do líder campesino João Pedro Teixeira, ocorrido em 1962. O longa teve suas filmagens interrompidas em 1964, em decorrência da ditadura militar, e foi concluído apenas 20 anos depois, tornando-se imediatamente um clássico do nosso cinema. Coutinho seguiu como principal nome do documentário brasileiro contemporâneo, tendo feito outros filmes aclamados, como Santo Forte, Edifício Master e Jogo de Cena. Em 2011, ele lançou Canções.
Não podemos deixar de lembrar também de João Moreira Salles (Nelson Freire, Notícias de uma Guerra Particular, Entreatos e Santiago) e de Vladimir Carvalho (O País de São Saruê, O Engenho de Zé Lins, Rock Brasília) como nomes fortes entre os documentaristas brasileiros fundamentais para a nossa filmografia.
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Carla Maia estreou na direção neste ano com o documentário Roda (co-dirigido por Raquel Junqueira), filmando vários encontros e retratando a história da velha guarda do samba de Belo Horizonte. O filme já foi exibido algumas vezes na capital mineira, mas ainda não possui um distribuidor.
Ela explica como o projeto foi viabilizado: “Roda foi filmado com recursos do Fundo Municipal de Cultura de Belo Horizonte, edital de 2005/2006. Conseguimos o recurso e fizemos o filme de modo bem simples, com equipe pequena. Daí o dinheiro acabou e continuamos trabalhando com o filme, mas com dificuldade, porque precisávamos cuidar da vida prática, conseguir trabalhos remunerados e etc. Em 2008, o filme foi aprovado no Edital 2009/2010 do Filme em Minas, patrocinado pela Cemig, uma iniciativa da Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais. Recebemos, com isso, um bom recurso para finalizar o filme, acabar a montagem e finalizar o tratamento de imagem e som. Logo, o Roda é um filme inteiramente viabilizado através de recursos públicos, via editais, não houve captação direta”.
Já os amigos Daniel Accioly e Leonardo Silva decidiram realizar um documentário enquanto cursavam a faculdade de Cinema da PUC-Rio. Com recursos próprios, eles realizaram Mais de Três Foi o Diabo Que Fez, um curta-metragem de 15 minutos que fala sobre a música "Você Não Soube Me Amar", o maior hit da Blitz, famosa banda brasileira de rock dos anos 80. Os diretores esperam exibir o filme em festivais durante 2012, ano em que a banda completará 30 anos. Confira o trailer:
O diretor do curta, Leonardo Souza, explica que o mais difícil é o processo de distribuição: “Sem dúvida, quando se está na faculdade de Cinema com várias pessoas querendo aprender a produzir e a fazer um filme, acaba não sendo algo tão difícil devido à disposição de todos e à entrega que temos. Já na hora de distribuir, a coisa muda um pouco. Estamos mexendo com grana de meios de comunicação, e aí as coisas não dependem somente de você e da sua vontade, o que torna o processo um pouco mais difícil”.
Já o produtor Daniel Accioly afirma que a pior parte é o processo burocrático da aquisição de direitos autorais: “A música tem quatro autores e cada um editou em uma editora. E cada editora tem uma política específica. Então, esse intervalo de tempo foi usado para vencer etapa por etapa, com muita cautela. Ainda temos trabalho burocrático para terminar, mas a pior parte foi concluída. Por isso, podemos afirmar com tranquilidade que a parte da filmagem foi a mais simples”.
Para Carla, a filmagem também não é um bicho de sete cabeças. Segundo ela, filmar um documentário muitas vezes pode ser mais fácil do que uma ficção: “Em termos práticos e generalizando, documentário pode ser mais simples porque exige menos equipe e menos ‘parafernália’, o que significa menos recurso... Sai mais barato, na maioria dos casos”.
Mas, afinal: quantas ficções são lançadas comercialmente para cada documentário que chega ao cinemas? Um dos motivos para a predominância de um formato sobre o outro é que a ficção pode ser mais abrangente e pode englobar mais gêneros do que o documentário. Outro é que a aceitação do público é maior em relação à ficção, seja pela familiaridade com o formato (mais encontrado também na televisão e nos livros, por exemplo), seja pela maior facilidade de processos de identificação que a ficção pode oferecer. De qualquer maneira, Carla garante que a aceitação dos documentários é boa nos festivais: “Fora do circuito comercial, vejo um aumento do interesse pelo documentário. A criação e manutenção de festivais de documentários no Brasil são prova disso. O forumdoc.bh, que organizo, tem sempre um público muito bom e interessado".
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É um consenso que os festivais são de suma importância para os documentários, como afirma a pesquisadora: “Os festivais acabam por ser um importante espaço de visibilidade para a maior parte dos documentários realizados no Brasil. Além disso, eles formam público, ou seja, qualificam os futuros realizadores”.
Segundo Leonardo Souza: “Os festivais se apresentam como verdadeiros fóruns e são a janela para mostrarmos nossos filmes ao público. Não faz sentido produzir se aquela obra não pode ser vista e em seqüência debatida. Tudo faz parte de um ciclo... Ciclo essencial para nós que estamos começando”.
Daniel Accioly concorda: “O documentário, por ter um menor alcance dentro das grandes mídias, se torna viável e consagrado em função dos diversos festivais, uns com mais recursos, apoiados por grandes empresas, outros de menor porte, movidos por pessoas apaixonadas que desejam com unhas e dentes propagar esse ruído. Esse gênero vive dessa paixão, e os festivais alimentam e são alimentados por essa paixão”.
A importância dos festivais não está apenas no Brasil. Talvez seja por isso que os documentários possuem categorias exclusivas nas principais premiações do mundo. Alguns documentários brasileiros já viraram destaque nessas premiações, como foi o caso de Lixo Extraordinário (co-produção inglesa, filmada no Rio de Janeiro, a partir do trabalho do artista plástico brasileiro Vik Muniz), indicado ao Oscar da categoria este ano. Devemos citar também Senna, sobre o campeão da Fórmula 1 Ayrton Senna, com direção de Asif Kapadia (de Um Guerreiro Solitário), que venceu como melhor documentário na escolha da audiência do Festival de Sundance de 2011 e foi um dos cinco melhores documentários do ano, segundo a tradicional National Board of Review.
Mas, além das premiações e festivais, esses filmes costumam fazer algum sucesso? Quanto a isto, os números ainda são tímidos. De acordo com dados da Ancine, no período de 1995 a 2009, pouco mais de 2,6 milhões de pessoas foram assistir a algum documentário nacional no circuito comercial, o que representa 2% do público geral de filmes nacionais do período.
No Brasil, muitos documentários são exibidos apenas em festivais específicos. O melhor exemplo é o É Tudo Verdade. Um dos principais festivais do gênero da América Latina, o evento foi idealizado pelo crítico Amir Labaki. Outro festival dedicado ao documentário é o forumdoc.bh, que, além da exibição gratuita de filmes com caráter documental, também conta com palestras e debates.
No entanto, para a organizadora do forumdoc.bh, o problema da restrição de filmes a festivais também atinge as ficções: "No Brasil, a produção aumentou muito, mas o gargalo da exibição ainda é muito estreito, deixa muita coisa de fora", afirma Carla. "É preciso criar circuitos alternativos. Os realizadores também têm de se dar conta da importância e potência desse circuito de exibição em pontos de cultura, centros culturais, não dá para querer só o 'cinemão'... As pequenas salas improvisadas no interior, fora dos eixos das capitais do Sudeste, chegam até um público carente de atividades culturais. É preciso investir nesse circuito."
Então, o que você, leitor e cinéfilo, pode fazer para que os documentários brasileiros tenham maior visibilidade? É simples: dê uma chance a eles. Vá aos festivais e apoie com o seu ingresso quando os filmes chegarem aos cinemas.
Leonardo explica por que o formato é fascinante: “O documentário cumpre um papel muito interessante, e por mais didático que ele possa ser em certos casos, a sua principal função, e o que mais me motiva a fazer documentários, é a possibilidade de contar uma história sob um ponto de vista que ainda não foi contado. Sem falar que o documentário estimula o debate”. E Daniel conclui: “O formato é atrativo por seu teor humano, é uma grande ferramenta social. Permite ao espectador visitar realidades tão distintas sem, geograficamente, se mover. Todo lugar tem uma história boa que vai gerar emoção em quem assistir. Esta é a função do documentário”.
Leia a entrevista com Carla Maia na íntegra
Leia a entrevista com Leonardo Souza e Daniel Accioly na íntegra