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Não gosta de filme nacional? Entenda o Cinema da Retomada Que Cinema é Esse?

Você já passou pela seguinte situação: você comenta empolgado sobre um filme ótimo, ou convida alguém para assistir a um filme que você está empolgado para ver, e ao explicar mais sobre o filme a pessoa responde, "Ih, é filme nacional? Não assisto a filme nacional, não gosto de filme nacional!"? Infelizmente, muita gente já deve ter passado por essa chata situação de desvalorização do nosso cinema, como se "filme nacional" fosse um gênero (nas grandes videolocadoras, inclusive, eles normalmente são agrupados em uma seção separada) e não houvesse diversidade entre nossas produções.

Pois é, mas nem sempre foi assim. Até meados da década de 80, o público realmente gostava de assistir a filmes nacionais. O que será que houve, então, para que as pessoas adquirissem tanto preconceito?

Nós já contamos um pouco das transformações ocasionadas pelo Cinema da Retomada na última edição da coluna Clube dos Cinco. Mas, dessa vez, vamos detalhá-la um pouco mais para vocês, passando por um panorama geral da produção no Brasil, desde a década de 70. A quarta edição da coluna Que Cinema é Esse? procura explicar: afinal, o que foi o cinema da retomada, e por que ele foi tão importante?

O auge

Dona Flor e Seus Dois Maridos, segundo maior sucesso nacional nas bilheterias de todos os temposEm 1969, durante a ditadura militar, foi criada a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) e o Conselho Nacional de Cinema (Concine). A Embrafilme utilizava taxas para aplicar na produção nacional parte dos lucros que as distribuidoras conseguiam com a exibição de filmes estrangeiros no país, enquanto o Concine ficava a cargo da legislação do nosso cinema. Apesar de algumas críticas à empresa, como a concentração de recursos para filmes produzidos no Rio de Janeiro, houve um considerável fomento na produção, que aliado a diversos fatores (como o sucesso dos filmes dos Trapalhões perante o público infantil, a crescente convergência do cinema com a televisão, e, principalmente, o sucesso da pornochanchada, um dos gêneros de maior sucesso comercial que o Brasil já teve - e que na maioria das vezes não era financiado pela Embrafilme, e sim pela iniciativa privada), fizeram com que a década de 70 alcançasse um patamar na história do cinema nacional dificilmente superado.

A produção foi crescendo gradativamente e a década foi sendo a dos recordes cinematográficos, com cerca de 20 filmes nacionais alcançando a marca de 500 mil espectadores por ano - chegando a 36 filmes atingindo esse público em 1975. No ano seguinte, Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, leva 10 milhões de pessoas aos cinemas, algo que nenhum filme estrangeiro havia conseguido no país, na época. O market share (proporção de filmes nacionais lançados no país) no início da década de 80 foi de 35%. O mercado exibidor acompanhou o crescimento, com o Brasil passando a ter mais de três mil salas de cinemas de 1975 a 1977.

O declínio

O que estava indo muito bem não teve uma longa duração. Na década de 80, durante o processo de redemocratização do país, uma crise econômica abala, entre vários setores, o mercado audiovisual. A escassez financeira, somada a escassez do tema das pornochanchadas, fez com que a crise se alastrasse também para o cinema. Das 3 mil salas de cinema da década de 70, passamos para pouco mais de 1.500 em 1984, número que foi diminuindo até chegar ao deprimente 1.033, em 1995.

O que já não estava indo bem se tornou ainda pior na década de 90, quando Fernando Collor de Mello, primeiro presidente empossado por eleições diretas, suspendeu, através de medidas provisórias, quase todos os mecanismos de incentivo, chegando ao ato extremo da extinção do Concine e da Embrafilme, o que é tido por muitos como a ação definitiva para a estagnação da produção nacional.

De 1991 a 1995, apenas dois filmes nacionais alcançaram mais de 500 mil espectadores nos cinemas, sendo que em 1992 apenas um filme brasileiro chegou às telas (a menos de 1% delas): o longa A Grande Arte, de Walter Salles, em língua inglesa.

A Retomada

Apesar de ter promulgado a Lei Rouanet (através do então secretário da Cultura Sérgio Paulo Rouanet), o principal mecanismo de incentivo à cultura até hoje, foi somente após a renúncia de Collor que o cinema nacional voltou a respirar (ainda que muito timidamente). Embora a Embrafilme nunca tenha voltado à ativa, o falecido presidente Itamar Franco, sucessor de Collor, promulgou a Lei do Audiovisual - uma lei de incentivo fiscal mais específica para o setor, e, até hoje, a mais utilizada - e seu sucessor, o presidente Fernando Henrique Cardoso deu continuidade às suas políticas estatais de fomento à cultura. Em 2001, foi inaugurada a Ancine - Agência Nacional do Cinema, o órgão de regulação do cinema nacional. 

Carlota Joaquina, filme tido como marco do Cinema da RetomadaE é durante esse período de governo FHC que ocorreu o chamado Cinema da Retomada. O filme tido como marco inicial do movimento foi Carlota Joaquina, de Carla Camurati, lançado em 1995, primeiro filme nacional da década a levar mais de 1 milhão de pessoas ao cinema.

A "retomada" das leis de incentivo definitivamente deram um impulso para a produção novamente. Em 1995, já foram lançados 14 longas, número que foi aumentando gradativamente. Durante o período de oito anos, chegaram aos cinemas mais de 180 longas, com 21 deles alcançando mais de 500 mil espectadores. O público que foi aos cinemas assistir a um longa brasileiro subiu de cerca de 800 mil, em 1996, para mais de 22 milhões, em 2003. As salas de cinema também foram aumentando, chegando novamente a mais de 2 mil salas em 2005 (chegaremos a 3 mil novamente? Espero que sim, em breve).

Embora os incentivos fiscais públicos (e novas formas foram criadas ao longo dos anos, como o Fundo Setorial da Ancine, por exemplo) sejam proporcionais ao sucesso do mercado nacional (o apoio público em 1995 foi de R$ 30.535.481, em 2010 chegou a R$ 154.137.225), há quem justifique que não foram somente as leis que proporcionaram o crescimento, mas também a qualidade dos filmes.

A doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais, Fernanda Salvo, defende essa teoria: "É claro que as leis de incentivo dos anos 90 injetaram fôlego na produção cinematográfica. E, desse modo, o cinema que se fez tornou-se tributário de uma nova forma de produção. Mas é preciso também mencionar outros fatores que impulsionaram o crescente sucesso desse cinema, tais como o aparecimento de filmes com bastante qualidade e bom acabamento técnico. Fundamental lembrar, ainda, que as leis de incentivo permitiram que uma nova geração de cineastas pudesse se revelar, o que atribui maior heterogeneidade ao cinema produzido no país. Isso equivale a dizer que os filmes dos anos 90 não se ligaram mais a gêneros ou temáticas especificas, mas visitaram uma variedade enorme de assuntos, com a utilização de novos formatos. Desse modo, a opção de tratamento oferecida pelos cineastas a esses diferentes assuntos – em filmes que variavam entre políticos, comédias, denúncia, entretenimento, policiais, épicos, infantis, entre outros – talvez seja o fator que mais fortemente explique a reaproximação e o dialogo que o cinema dos anos 90 recuperou com o público".

O professor de Jornalismo na UFMG e colunista da revista de cinema Filmes Polvo, Nísio Teixeira, também menciona outras contribuições para tal crescimento: "Acho que a gradativa proliferação dos festivais de cinema foi outro elemento importante para essa divulgação do cinema nacional, bem como o acesso facilitado aos equipamentos cinematográficos, além, claro, de uma produção maior de filmes que pudesse alcançar e atingir um maior público - e aí voltamos às leis".

Com muitos filmes abordando temáticas sociais, são diversas as características que podem ser atribuídas àquele momento do cinema. De acordo com Fernanda, os autores adotaram abordagens mais intimistas: "No novo contexto histórico dos anos 90, cada cineasta se sentiu livre para cumprir sua própria agenda, o que justifica a presença de um cinema mais marcado pelo tom pessoal".

Alguns consensos entre o professor Nísio e Fernanda são o deslocamento do eixo Rio-São Paulo de produção para outras partes do país e a revisitação do sertão e da favela, presentes em movimentos artísticos do passado. De acordo com Nísio: "Gosto de pensar na ideia de que a retomada tem a ver, também, com retomar temáticas caras à cinematografia nacional, como o sertão e a favela, por exemplo, mas sob outras óticas". Fernanda replica: "Vale destacar que esse procedimento de retratar o sertão e a favela sob um novo olhar foi alvo de críticas de vários teóricos, principalmente da pesquisadora Ivana Bentes, que cunhou a expressão 'cosmética da fome' para denunciar a 'espetacularização do sertão e da favela' promovida pelo cinema dos anos 90".

O cinema hoje  

Cidade de Deus, um marco para o cinema atual, de 2002.Embora muitos considerem como ainda vigente o período da Retomada, alguns autores afirmam que nós já passamos para outro momento. De acordo com a doutoranda: "Muito já se criou após a chamada Retomada no cinema brasileiro, inclusive alguns importantes autores, como Luiz Zanin Oricchio, consideram que o ciclo da retomada foi finalizado com o filme Cidade de Deus (2002), que teria funcionado como uma espécie sintetizador de uma tendência que se desenhou ao longo dos anos 90, e, por isso mesmo, poderia ser considerado como um divisor de águas na história recente do cinema nacional".

Independente do nome que damos ao cinema que estamos vivendo hoje, os resultados têm cada vez mais se igualando àquilo que já alcançamos quase 40 anos atrás. Somente em 2010, foram mais de 120 longas lançados, com 75 deles sendo exibidos em salas de cinema comerciais. O ano de 2010, inclusive, pode ser considerado o ano dos recordes, com Tropa de Elite 2, de José Padilha, alcançado o posto de filme nacional mais assistido de todos os tempos, com um público de 11 milhões de pessoas, superando Dona Flor e Seus Dois Maridos após quase 40 anos.

Fernanda Salvo no momento desenvolve uma pesquisa intitulada “A figuração do outro no cinema brasileiro pós-retomada - cotidiano, subjetividade e espaços periféricos”, e fala sobre esse cenário atual: "Boa parte da produção parece ainda explorar os tensionamentos, contradições e dilemas existentes na sociedade, mas agora apostando numa estética menos grandiloquente e espetacular, que pode ser observada, por exemplo, em filmes como O Céu de Suely (dirigido por Karim Aïnouz, 2006) e A Casa de Alice (de Chico Teixeira, 2007). No que diz respeito aos dados do período, não seria errôneo afirmar que na chamada pós-retomada o filme nacional parece ter firmado um caminho, sobretudo levando-se em conta o número de lançamentos anuais, a participação dos filmes em festivais internacionais e a presença do público nas salas de exibição".

O professor Nísio ainda espera mais: "Há uma crescente privatização da fruição audiovisual e gostaria de ver mais salas dedicadas a exibir coisas diferentes, em especial produções relacionadas ao cinema nacional, que encontram apoio para serem produzidas, mas não a contrapartida necessária para distribuição e exibição - e, nesse sentido, a coisa parece não ter mudado tanto. Quem sabe, no futuro, estratégias, via lei de incentivo ou não, que possam englobar também esses outros elos da cadeia produtiva?"

Nós esperamos que sim!

Confira aqui a entrevista na íntegra com Fernanda Salvo

Confira aqui a entrevista na íntegra com Nísio Teixeira

Sobre o autor:

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