Na última edição da coluna Que Cinema é Esse?, nós questionamos se é possível fazer filme independente no Brasil sem Leis de Incentivo. O que conseguimos de resposta dos produtores Vânia Catani e Fabiano Gullane foi que é difícil fazer qualquer tipo de cinema sem lei de incentivo no país; e da secretária do Audiovisual do Ministério da Cultura, Ana Paula Santana, a garantia de que essas leis ainda vão durar muito tempo.
Nesta edição, nós temos a contrapartida. O depoimento de alguém que consegue, e está sendo bem sucedida, em distribuir filmes independentes sem contar com a ajuda do Estado: Silvia Cruz, da Vitrine Filmes. E o lado de quem é contra as leis de incentivo, pelo menos em sua configuração atual, o professor de cinema André Gatti. O objetivo da coluna com isso não é dizer o melhor caminho - com ou sem lei de incentivo - e, sim, apresentar ao leitor diferentes pontos de vista.
Outras maneiras - A Vitrine
Na última Mostra CineBH, a primeira vez que o nome de Silvia Cruz, sócia da Vitrine Filmes, distribuidora paulista, surgiu foi nas palavras da produtora Vânia Catani, da Bananeira Filmes: “Eu não conformo com esse resultado de venda de ingresso, eu não acho que eles são de fato o que o filme poderia ser. Acho que a gente tem, sim, problemas de distribuição, a gente tem, sim, problemas de sala, mas eu acho que a Silvinha, por exemplo, é uma pessoa que se propõe agora a pensar uma maneira diferenciada de distribuir esse tipo de filme [mais "autorais"], porque eles vão continuar sendo feitos, tem gente que tá interessada neles. Agora, tem que falar com essa gente. Qualquer negócio é assim. Sei lá, você não vende jóia pra todo mundo, mas você vende jóia, tem gente que compra".
O que Silvia Cruz tenta fazer é exatamente isso, buscar uma maneira diferenciada de distribuir esses filmes independentes, em locais que atraiam esse tipo de público. Para ela, seria prejudicial colocar essas produções mais autorais em grande circuito, em grandes salas, pois isso faria mal para o mercado, pelo público mais restrito do filme. As salas de cinema possuem um caráter maior de "cinema evento", e por isso, recebem essas grandes produções com maior preferência.
Mas existe público para os filmes independentes, e, por isso, a Sessão Vitrine busca agrupar esses filmes e levá-los para salas menores - em museus e centros culturais - das cidades, a preços mais baratos - nenhum ingresso do projeto ultrapassa R$10. Atualmente, a Sessão Vitrine funciona em 13 capitais brasileiras, em todas as regiões do país, tendo mais quatro cidades em negociação.
O projeto da Vitrine é todo feito sem leis de incentivo, e Silvia explica como consegue: "Se os custos maiores são de assessoria de imprensa, site, material de divulgação, uma vez que a gente puder fazer tudo isso para todos, o dinheiro dividido entre todos fica muito menor. Então, a gente pode fazer um orçamento com muito pouco dinheiro, porque a gente também sabe que a gente vai ter muito pouco dinheiro na bilheteria. É uma equação que é condizente. Acho que tem filmes que ganham editais, ganham muito dinheiro, e o filme acaba sendo visto por muito pouca gente. A gente quer fazer o contrário: lançar com muito pouco, alcançar o máximo que a gente puder e já sabe que a renda não vai custear esse mercado.
"A minha ideia foi sempre tentar fazer uma venda para algum canal de TV, algum dinheiro privado antes do lançamento, e usar esse dinheiro pro lançamento. A gente vende alguns filmes pro Canal Brasil, é uma pré-venda, então, eles já dão o dinheiro agora, a gente usa o dinheiro pro lançamento e eles têm o direito de exibição três, quatro meses depois - o que para eles vale muito a pena, porque esse filme já passou no cinema e, obviamente, ele vai ter um destaque maior na TV, as pessoas já conhecem, o filme já foi divulgado. Em alguns casos, o filme já foi vendido pra um canal, ou a venda não aconteceu. Enfim, cada caso é um caso, tem filme que sobrou algum dinheirinho da produção, tem filme que ganhou algum edital na cidade dele para ser lançado, enfim... Cada filme a gente vê quanto tem de dinheiro e a gente faz uma equação para que seja dividido para todos, para todo o projeto".
Silvia vê que a sessão funciona realmente como uma vitrine, e que o caminho para esses filmes terem um pouco mais de lucratividade é a internet, em sites como o Mubi, por exemplo, que possui um público mais especializado.
Mas Silvia também admite que não é fácil se manter sem leis de incentivo. Um pouco antes da elaboração dessa coluna, a Vitrine foi contemplada pela Linha C do Fundo Setorial do Audiovisual. O Fundo Setorial é uma iniciativa da Ancine (Agência Nacional de Cinema), que destina dinheiro para produção e distribuição de filmes nacionais. O dinheiro do fundo vem de impostos e taxas obrigatórias pagas por empresas de telecomunicações e produtores de conteúdo para TV e comerciais. A Linha C, especificamente, dá o dinheiro para o distribuidor, mas para que ele seja investido na produção do filme, e a empresa beneficiada fica com os direitos de distribuição, automaticamente. Ao questionarmos Silvia quanto a isso, ela disse que realmente acha mais saudável se manter sem dinheiro das leis de incentivo, mas que está cada vez mais difícil se manter assim, e que o dinheiro privado é bem menor que o público.
Contrapontos às leis de incentivo
Você já se perguntou por que a Globo Filmes (uma empresa que aparentemente não precisaria de incentivos do Estado para financiar nada, certo?) tem sempre seu nome vinculado àqueles filmes que mostram as milhares de logomarcas de leis de incentivo em seu início?
Um dos principais questionamentos de algumas pessoas quanto a essas leis vem do fato de boa parte dos recursos serem direcionados para filmes de grandes produtoras e com grande apelo comercial, filmes que já teriam uma bilheteria rentável o suficiente para custear sua produção e obter lucro. Muitas vezes, o recursos destinado a um só filme desse tipo poderia ser o suficiente para custear vários pequenos filmes independentes. A continuação Muita Calma Nessa Hora 2, por exemplo, foi beneficiada neste mês com a mesma Linha C do Fundo Setorial do Audiovisual, da Ancine. Serão investidos na sua produção R$3 milhões de reais, sendo que a primeira parte do filme, do mesmo diretor, Felipe Joffily, foi a quarta maior bilheteria de 2010 do cinema nacional, arrecadando mais de R$11 milhões nos cinemas. Outra coisa que incomodou o público esta semana, em relação as leis de incentivo, foi a matéria do Correio Braziliense que denuncia que o Rock in Rio recebeu incentivos - via Lei Rouanet - para ser realizado. Considerando que o propósito principal das leis de incentivo é democratizar a cultura, dá para considerar que um evento em que o ingresso custa no mínimo R$190 é democrático?
No texto a Globalização do Cinema no Brasil (1993-2009) (páginas 10 a 13), o professor de Cinema Brasileiro na FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado), em São Paulo, André Gatti, questiona e expõe este e mais alguns dos problemas das leis de incentivo, e do cinema nacional como um todo, ao demonstrar a dominância das empresas majors (empresas multinacionais, na maioria dos casos, norte-americanas) de distribuição, geralmente em parceria com a Globo Filmes, no mercado audiovisual brasileiro. Essas empresas, e os filmes que elas distribuem, acabam se fortalecendo, em detrimento de empresas nacionais que fazem produções com um conteúdo cultural mais próximo da realidade brasileira. De acordo com o professor, esse é um dos motivos que o faz ser contra as leis de incentivo, em sua forma atual. Ou em suas próprias palavras:
“Por que eu sou contra as leis de incentivo? Porque é uma maneira preguiçosa do Estado se acomodar em relação aos fatos. Porque quando a gente acompanha o processo histórico que derivou no que são as leis de incentivo, no fundo é assim: o Estado sai da cena e repassa para a sociedade civil resolver o problema, com recursos do Estado. Tudo bem. O problema é que isso não gerou uma política para o cinema e o audiovisual brasileiro. Uma coisa é democratizar o acesso, a circulação e tudo mais, outra coisa é a formação da indústria. Aí é a política que tem que ter, o Estado tem que ter uma política, é o Estado que dá o dinheiro! Então, esse é o problema.
"O outro problema é o círculo vicioso do artigo 3º. O artigo 3º é um artigo que obviamente capta menos dinheiro do que o artigo 1º, mas é o que beneficia mais os realizadores, porque, lembre-se: o artigo 1º é 6% do Imposto de Renda devido; o artigo 3º é até 70% do imposto devido. Então, é um descompasso. Porque para as empresas majors, você deixa ela investir até 70% do imposto devido, e as empresas que não estão na área do audiovisual só podem usar até 6%. O que isso implica? Isso implica no fato que só podem investir grandes empresas, você não pode chegar na padaria da esquina lá e falar: "O senhor não pode ajudar meu curta?”
"Depois, tem o outro lado, que é uma questão de contrapartida que não existe. O estado dá dinheiro para o realizador, para ele constituir um patrimônio para ele? Como é que é? "Ah não, porque foi assim com a industria isso, com a industria aquilo...". Tudo bem. Mas então, é papel do estado financiar filmes para as produtoras se tornarem donas de um filme. Depois, na hora de botar na Programadora Brasil, os caras fazem mil lenga-lengas, "porque não pode isso, não pode aquilo". Pô! Mas o teu filme foi feito com dinheiro público cara, não entendo! O filme lançado não fez nada na bilheteria, não fez nada no DVD, e você não quer que as pessoas vejam seu filme também? Então, que democratização é essa? É assim: se o mercado tá indo bem, então porque só faz filme com dinheiro incentivado e não entra dinheiro bom nessa história? Me explica? Alguma coisa está errada aí. Porque? Porque o sistema está viciado”.
É um pouco complicado, principalmente para leigos, entender a diferença entre esses artigos mencionados pelo professor, mas a diferença principal é que no artigo 1º, qualquer empresa sediada no Brasil, independente do ramo, pode investir partes de seus dividendos fiscais - com máximo de 6% - na produção de filmes nacionais. No artigo 3º, empresas estrangeiras localizadas no Brasil, incluindo as principais distribuidoras de Hollywood, podem aplicar parte de seus dividendos - sendo no máximo 70% - nas produções locais. Esse artigo também se estende às produções para TV.
Gatti explica que uma reflexão e reformulação desse sistema é uma das soluções: "Eu acho que, o que a lei tem que estabelecer nesse momento é uma reflexão crítica sobre as leis de incentivo, é ver os prós e os contras e fazer uma coisa comparada com o que outros países fazem, como a França, como a Argentina, sei lá, pegar outros modelos como exemplo, para a gente ter um modelo mais sensato. Porque o que acabou acontecendo nesse momento é que o gênero que foi consagrado é um gênero importado, que é a comédia romântica. E o cinema brasileiro como é que fica nessa história, nossa tradição, nossa cultura? Comédia romântica não é o nosso gênero, o nosso gênero sempre foi a pornochanchada ou a chanchada, que é o nosso filme de comédia. Então, o próprio cinema brasileiro tá ficando muito pasteurizado. Claro que tem essa moçada que faz um cinema mais legal e tal, mas esse cinema não dialoga com o público. Então, a gente precisa achar uma equipe, um jeito de ter um tipo de cinema que seja contestador, que seja questionador e tudo, mas que dialogue com o público, porque cinema, para mim, é um meio de comunicação social, não é eu e meus amigos vendo meus filmes".
Leia a entrevista completa de André Gatti aqui.
Leia a entrevista completa de Silvia Cruz aqui.
Que Cinema é Esse? Outros pontos de vista sobre as Leis de Incentivo