No dia 17 de fevereiro, o Sindicato dos Figurinistas dos Estados Unidos revelou os vencedores de seu 17º prêmio anual (Costume Designer Guild Awards). A competição tem como votantes profissionais da área, como figurinistas, assistentes de figurino e ilustradores que tenham vínculo com o sindicato, e o prêmio abarca produções de cinema, televisão e publicidade. Por se tratar de uma escolha feita pelos próprios profissionais, a tendência é que avaliem mais as sutilezas da obra indicada, enquanto outros prêmios, como o Oscar, por exemplo, tendem a lembrar apenas dos figurinos mais vistosos. Isso pode ser percebido no fato de no ano passado o Sindicato ter premiado 12 Anos de Escravidão (na categoria Filme de Época) e o Oscar, a exuberância de O Grande Gatsby (para ler análise completa dos indicados e vencedores do ano anterior acesse aqui).
Abaixo estão as categorias, seus indicados (com o vencedor em destaque) e uma breve análise sobre cada uma:
Excelência em Filme de Fantasia:
Jogos Vorazes: A Esperança - Parte 1 – Kurt and Bart
Caminhos da Floresta – Colleen Atwood
Malévola – Anna B. Sheppard, Jane Clive
Guardiões da Galáxia – Alexandra Byrne
O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos – Bob Buck, Lesley Burkes-Harding, Ann Maskrey
De antemão já aviso que não assisti ao último filme da trilogia O Hobbit, mas pelas imagens de divulgação é possível dizer que segue a mesma linha e é mais do mesmo dentro da série. Conforme falei ano passado, é difícil não ver esse trabalho como uma continuidade do que era feito em O Senhor dos Anéis, mas de maneira bem menos impressionante.
Quase o mesmo pode ser dito a respeito de Jogos Vorazes: A Esperança - Parte 1. Com figurinistas diferentes a cada filme, percebe-se que Trish Summerville, responsável pelo segundo longa, Em Chamas, ampliou e aprimorou as decisões estéticas tomadas por Judianna Makovsky no primeiro. Coube à dupla Kurt e Bert preservar o interesse com as roupas utilitárias do 13º Distrito, destacando diferenças entre as personalidades e hierarquias dos personagens, mesmo que com uso de uniformes. Quanto ao que se passa na capital, mantiveram o minimalismo do Presidente em contraste com a exuberância da moda vigente, reforçando o desconforto de quem ficou para trás através de pequenos detalhes. Não é um trabalho tão vistoso, mas cumpre muito bem seu papel (leia aqui a análise do figurino de Jogos Vorazes: A Esperança - Parte 1).
Já em Guardiões da Galáxia, Peter Quill precisava passar a imagem de um aventureiro, uma espécie de Indiana Jones. A dancinha inicial aliada ao sobretudo já revelam a personalidade do personagem. Posteriormente, a jaqueta vermelha vai marcar seu visual. Além dele, há Gamora, com roupas justas e que liberam os movimentos para luta; Drax vestindo apenas calças cargo, deixando seu torso de lutador à mostra, Rocket de armadura, uma vez que sua constituição de pequeno mamífero é frágil e... Groot, que dispensa esse tipo de formalidade. Contando ainda com vilões e muitos coadjuvantes, o filme confere individualidade a eles, fazendo grande uso de vinil e armaduras e com uma profusão de detalhes e texturas.
Malévola possui um figurino muito bonito, que mostra com clareza a trajetória da personagem. De silhuetas soltas e fluidas até formas rígidas, que incluem seu adorno de cabeça, seus trajes demonstram o trauma pelo qual passou. As cores também auxiliam: de tons neutros de marrom e amarelo que a ligavam à natureza ao seu redor, durante a infância, ela chega ao negro total ao amaldiçoar Aurora. Elementos naturais, como peles, garras, ossos e penas, adornam suas roupas. E há ainda os belos trajes medievais em tons pastel da princesa. Em um ano em que nenhum dos indicados se destaca em relação aos demais, esse seria o que eu escolheria na categoria (leia aqui a análise do figurino de Malévola).
Apesar de gostar muito do figurino de Malévola, é inegável a beleza do trabalho de Colleen Atwood (conhecida por ser colaboradora de longa data de Tim Burton) no musical Caminhos da Floresta. Adaptado do musical da Broadway de mesmo nome, a trama não se passa em nenhum momento específico da História, de maneira que o figurino foi trabalhado com grande liberdade. Os detalhes são muitos: o capuz estruturado da capa de Chapeuzinho Vermelho, bem como seu sapatinho com múltiplas fivelas; o vestido diáfano repleto de amarrações que remetem ao encarceramento, utilizado por Rapunzel; o Lobo Mau com um paletó zoot, traje com gravata curta e calças volumosas e cintura alta, utilizado nos Estados Unidos no começo do século passado. A variedade de formas e cores é imensa, mas o destaque é o misto de Fada Madrinha com Bruxa Má da personagem de Meryl Streep. Com grandes mangas bufantes e cintura marcada por um corpete oculto que estrutura a forma, sua aparência, acrescida da volumosa cabeleira azul, é vistosa e serve bem à ambiguidade da personagem. O conjunto dos personagens é diverso, colorido e repleto de elementos interessantes.
Excelência em Filme de Época:
Vício Inerente – Mark Bridges
A Teoria de Tudo – Steven Noble
O Jogo da Imitação – Sammy Sheldon Differ
O Grande Hotel Budapeste – Milena Canonero
Selma – Ruth E. Carter
Essa categoria costuma ser a mais disputada, mas esse ano, tanto pelo nível mediano de grande parte dos competidores quanto pela grande qualidade de um deles, o vitorioso era uma certeza. Vício Inerente ainda não estreou no Brasil, então não posso comentar a seu respeito.
Selma é um trabalho que impressiona: Ruth Carter vestiu dezenas de figurantes presentes em cena. É possível ver a preocupação com a diversidade de classes sociais representadas, a diferença no vestir entre as gerações e o uso de múltiplas camadas de casacos, que, segundo ela, os manifestantes utilizavam para se proteger em caso de violência contra eles. É um trabalho bastante bonito.
Em A Teoria de Tudo, as roupas do protagonista, Stephen Hawking, são construídas de forma desproporcional, com grandes golas e tecidos sobrando, de maneira a mostrar a sua perda de musculatura sem que o ator precisasse emagrecer ou que fosse utilizado efeitos digitais. É semelhante ao que foi feito para frisar o emagrecimento de Matthew McConaughey em Clube de Compras Dallas no ano passado. A outra protagonista, Jane, utiliza roupas de jovem comportada da classe média de então, com muito azul para ajudar na percepção de juventude e frescor. Trata-se de um figurino apenas adequado, assim como o filme.
O mesmo acontece com O Jogo da Imitação. Tanto Alan Turing quanto sua amiga Joan Clarke se vestem de forma um pouco desleixada, com muitos tweeds, marrons e azuis. O restante da equipe é suficientemente individualizado em suas aparências, com destaque para a elegância em paletós bem cortados de Hugh (personagem de Matthew Goode). O resultado final cumpre o seu papel, mas não é nada excepcional.
Já O Grande Hotel Budapeste é certamente o vencedor merecido. Como em todo filme do diretor Wes Anderson, o figurino faz parte de um conjunto maior cuidadosamente criado para compor toda a estética da obra. Cada um dos três períodos recebe tratamento diferenciado, mas coesos dentro da proposta. O uso de cores dialoga com os cenários e as roupas, peculiares, são essenciais para nossa percepção dos personagens. Veterana na indústria, Milena Canonero sem dúvida fez um belo trabalho (leia aqui a análise do figurino de O Grande Hotel Budapeste).
Excelência em Filme Contemporâneo:
Birdman – Albert Wolsky
Boyhood – Kari Perkins
Garota Exemplar – Trish Summerville
Interestelar – Mary Zophres
Livre – Melissa Bruning
Essa foi a categoria com maior número de indicados realmente interessantes e, por, isso, a mais disputada. Interestelar e Boyhood são os dois mais fracos, embora seus figurinos façam o que se propõem. O primeiro compõe o retrato de um futuro devastado, em que as roupas são muito próximas das nossas. Há ainda a criação de trajes espaciais adequadamente envelhecidos. No segundo, a figurinista Kari Perkins fez um trabalho quase intuitivo, escolhendo as peças conforme foram filmando, de acordo com a idade dos personagens e deixando marcadas as modas de cada ano.
Livre é meu segundo preferido neste grupo. O figurino recriou diversas roupas registradas em fotos da Cheryl Strayed da vida real, como as bermudas, as calças, as camisetas (das lisas às estampadas, como uma do Bob Marley) e as botas com característicos cadarços vermelhos. Cada peça foi comprada ou confeccionada em grande número, para os diferentes estágios de envelhecimento e sujeira que aparecem em cena. Além disso, com os flashbacks, há a composição dela e dos demais personagens de seu círculo de conhecidos, em épocas que variam do final dos anos 80 até meados dos anos 90, quando começou a trilha. Apesar de ter sido categorizado como “contemporâneo”, poderia ter sido considerado um filme de época.
Em Garota Exemplar, Trish Summerville mostra mais uma vez porque é um nome que vem ascendendo tão rapidamente na indústria. O figurino é extremamente significativo na narrativa e esse é meu preferido da categoria. Amy passa por diversas fases: primeiro é a mulher confiante e senhora de si nos flashbacks mais antigos, vestindo roupas bem cortadas, urbanas e escuras: uma cool girl nova-iorquina. Ao longo do casamento, depois da mudança para o interior, ela altera seu jeito de vestir conforme deixa de ser quem queria. Ao fugir, ganha peso e se veste de forma desleixada para não chamar atenção para si. Quando volta para casa, começa a usar trajes que passam uma imagem mais delicada e tradicionalmente feminina. Até que, no desfecho do filme, com a última revelação para Nick, traja um vestido preto com detalhes brancos, sóbrio, que marca o corpo mas não tem detalhes. Amy fechou sua trajetória voltando a ser quem queria. Já Nick é aquele cara comum, que veste camisa azul e usa moletom com calça jeans. Ele não a desafia nem se desafia. Impressiona o nível de cuidado para que as roupas casem tão bem com a narrativa surpreendente. É uma pena que nem sempre figurinos contemporâneos tenham a atenção merecida.
Em Birdman o figurino precisa mostrar seus personagens nos palcos e fora dele. Para o teatro, há roupas dos anos 50 com cores vistosas, conforme a época que se passa a cena. Fora do personagem, o ator e agora diretor Riggan Thomson é um homem de meia idade em crise, que veste roupas monótonas e cuecas brancas. É claro que até as roupas íntimas foram planejadas para compor a falta de alinhamento do personagem com a contemporaneidade. Ele contrasta com sua filha Sam, que usa roupas modernas e descombinadas e mesmo com Mike, ator arrogante e autoconfiante que se veste de forma despojada e usa sunguinha estampada. Para coroar, há o próprio Birdman, cujo uniforme com texturas de penas, detalhes dourados no capuz, fivela do cinto, luvas e botas e cor preta azulada é suficientemente crível para poder ter sido usado de verdade em um filme, mas ainda assim mantendo um quê de ridículo.
Os indicados ao Oscar de Melhor Figurino deste ano foram os já citados Vício Inerente, Caminhos da Floresta, Malévola e O Grande Hotel Budapeste, acrescidos de Sr. Turner. Dessa vez a Academia acompanhou o Sindicato e premiou o belo trabalho de Milena Canonero em O Grande Hotel Budapeste.
Comente abaixo: quais foram os seus figurinos preferidos do último ano?
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É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.