“Era a ordem natural das coisas... tudo deve morrer.”
Era uma vez em uma Los Angeles imaginária e idílica, filtrada por um amarelo quente da luz solar, em um período de tempo não identificado, uma dupla inesperada que cria sua jornada heroica de aventura. Roy Walker (Lee Pace) trabalha como dublê em filmes mudos e está no hospital após se acidentar durante o serviço. Alexandria (Catinca Untaru) é uma menininha tratando seu braço quebrado no mesmo local. Desse encontro nasce a história que ele conta a ela: uma fantasia repleta de personagens coloridos e paisagens e locações impressionantes.
A direção de Dublê de Anjo é de Tarsem Singh e o figurino fica por conta de Eiko Ishioka. A profissional possui uma estética bastante marcante e autoral e seus trabalhos podem ser facilmente reconhecidos, conforme mencionado na análise Drácula de Bram Stoker, que pode ser lida aqui. As roupas de seus personagens têm fortes influências japonesas (e não só da moda) e barrocas, bem como uso predominante de cores sólidas e formas esculturais, que se estendem para os acessórios complementares.
Apesar de o período do filme ter sido deixado sem definição, tanto através da profissão do protagonista como das roupas das pessoas que frequentam o hospital, é possível dizer que se passa entre o final da década de 1910 e começo da de 1920. O cinema já estava bem desenvolvido, com produções que exigiam efeitos práticos e dublês e a moda feminina ainda exibia seus vestidos longos, com algum volume, aguardando a chegada da moda que subiria as barras das saias nos anos seguintes.
Para que a história faça sentido para Alexandria, os seus personagens são reflexos das pessoas que os rodeiam no cotidiano do hospital. Tudo começa com Roy explicando a Alexandria que a origem de seu nome remete a Alexandre, o Grande, que tem a aparência do médico. Com trajes estilizados que lembram o saiote de um centurião romano, um elmo com plumas no sentido contrário do comum (lado a lado, não da frente para trás) e o corpo coberto com uma leve camada de brilho dourado, o rei mais parece uma divindade solar. Mas Alexandria acha essa história tola e Roy a abandona para dar lugar à aventura de um quinteto pouco convencional.
Todos estão presos em uma ilha por serem antagonistas do vilão Governador Odious, que é um ator de cinema chamado Sinclair. O personagem principal é o Bandido Mascarado, uma encarnação do próprio Roy. A ele se juntam o Indiano (um colhedor de laranjas do pomar do hospital); Otta Benga, o ex-escravo (entregador de gelo); Luigi, o especialista em explosivos (um dublê bonachão de uma perna só) e Darwin (um soldado). Eles usam roupas que remetem de alguma forma às origens ficcionais dos personagens, de uma maneira que beira o exotizante, mas sem chegar no caricato. As cores são contrastantes e criam um conjunto vívido que gera interesse visual na tela.
O traje do Bandido Mascarado consiste em uma camisa sem mangas, preta com detalhes dourados, de inspiração militar; e uma calça com pernas extremamente largas, que cria fluidez de movimentos e uma certa poesia cinética. A princípio ele é espanhol, mas depois sua origem passa a ser francesa.
Sua máscara, bem como o cartaz do filme, é inspirada na obra de Dalí chamada Rosto de Mae West utilizado como apartamento surrealista, de 1935.
Na esquerda, quadro Rosto de Mae West utilizado como apartamento surrealista, de Salvador Dalí. Na direita, pôster do filme Dublê de Anjo.
O Indiano veste trajes que demonstram a imaginação de um americano que jamais pisou naquelas terras: uma longa túnica com saia plissada e cinto de tecido amassado, em tom verde esmeralda, com proteções para os braços douradas adornadas com padrões florais e turbante em formato peculiar. É a visão de um estrangeiro sobre o desconhecido.
A peça mais marcante do figurino de Otta Benga é seu elmo, adornado com longos chifres simétricos e uma cortina de contas prateadas. Sua saia é feita de couro com detalhes em pele e adornos metálicos. Ele também é uma visão ocidental do desconhecido.
Já Luigi veste uma casaca longa amarela, que parece juntar elementos tanto do Renascimento italiano quanto de um ideário de Oriente Próximo. As mangas e golas são trabalhadas em uma proporção exagerada. Seu chapéu, também renascentista, bem como as botas, ambos vermelhos, justamente com a cor do casaco, criam a percepção das cores do fogo ou da explosão, vinculados à sua profissão. Essa mensagem é completada pelas aplicações nas suas costas, que parecem fagulhas de chamas.
Por fim, Darwin, um naturalista, que esconde elementos bastante marcantes da moda britânica do século XIX, como o chapéu-coco, a gola careca e a bota de montaria, sob um volumoso casaco de pele tingido com padrão chamativo que imita o das asas de uma borboleta. É como se os olhos de suas costas servissem para afugentar possíveis predadores que pudessem atingi-lo devido ao seu porte físico franzino. A referência é bastante adequada, assim como o fato de seu macaquinho, que lhe cochicha suas melhores ideias, chamar-se Wallace, como o naturalista contemporâneo do Darwin original.
A esses cinco personagens junta-se o Místico (também um colhedor de laranjas), que veste somente uma tanga, mas cujo corpo é posteriormente coberto de bonitos grafismos que representam mapas.
No meio da jornada eles encontram Irmã Evelyn (a enfermeira), que se apresenta como uma flor em meio ao deserto. Seu traje possui uma flor de lótus bordada no peito e um chapéu com véu rígido em leque que também imita essa flor.
Adiante ela usará um traje lilás também bordado com flores e com drapeados transparentes que frisam a aparência diáfana da personagem.
Por fim, seu vestido de casamento é um traje branco com mangas volumosas, cuja totalidade não é possível ser vista em cena. O véu é composto por mais um chapéu estruturado de forma peculiar, com um véu de contas de cristal.
Na cena do casamento também é destaque a grande gola do sacerdote, que parece ser feita de origami.
O vilão, tanto em sua versão real, Sinclair, quanto na fantasiosa, Governador Odious, utiliza um traje moderno e da moda, que se esperaria de um astro janota. As calças são brancas, de corte amplo e são complementadas pelo paletó listrado, sapato bicolor e cabelo impecavelmente penteado para trás. Na sua versão fantasiosa, o paletó é confeccionado com um tecido mais brilhoso e algumas listras pendem para o dourado.
Um detalhe digno de nota é que o uniforme de seu exército é baseado na roupa do operador de raio-X que Alexandria viu e de quem ficou com receio.
A inspiração surrealista não se limita à máscara do Homem Mascarado: se estende às locações deslumbrantes, que na verdade são todos locais reais espalhados pelo globo. As composições impressionam e dialogam com os aspectos fantásticos, quase oníricos, da história narrada.
Pode-se dizer que o figurino de Dublê de Anjo quase não possui papel simbólico: as formas e cores são utilizadas de maneira plástica, visando criar o efeito visual mais interessante a ser capturado pela câmera. As analogias feitas, como da borboleta do casaco de Darwin e a flor de lótus de Evelyn, são bastante diretas e ainda assim marcadamente estilísticas. A exceção pode ser o uso de máscaras e véus, que pode ser entendida como o ocultamento das reais intenções de seus portadores. Ainda que não haja tanto a ser lido nas entrelinhas, só o cuidadoso trabalho técnico que é colocado nas peças projetadas por Eiko Ishioka já é o suficiente para que se tenha constantes pontos de interesse em cena. É possível não gostar da fábula ou da história como um todo, mas é muito difícil ficar incólume à beleza das imagens que se desdobra diante dos nossos olhos nesse filme.
É antropóloga e doutoranda em Antropologia Social pela USP, apaixonada por cinema e autora do blog Estante da Sala.