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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
05/08/2011 01/01/1970 5 / 5 5 / 5
Distribuidora

Melancolia
Melancholia

Dirigidopor Lars von Trier. Com: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, KieferSutherland, Charlotte Rampling, John Hurt, Alexander Skarsgård, Stellan Skarsgård,Brady Corbet, Udo Kier, Jesper Christensen.

Eu não hesito em abraçar a melancolia de tempos em tempos. Aliás, não é incomum que eu a busque intencionalmente através de músicas ou leituras específicas – principalmente quando preciso escrever e não consigo organizar os pensamentos. Nestes instantes, sinto que a melancolia “controlada” me oferece foco, me pega pela mão e me conduz a lugares que, de outra forma, eu não alcançaria. Por outro lado, como "ex"-depressivo, mantenho-me sempre alerta para não permitir que este estado se intensifique e saia de controle; afinal, a depressão não deixa de ser uma melancolia que tomou anabolizantes.


Ou, como neste filme, um planeta que, surgindo quase sem aviso, nos absorve e nos destrói sem piedade.

Abrindo a narrativa já com a colisão entre a Terra e o imenso astro azul que dá nome ao projeto, Melancolia faz jus ao título: escrito e dirigido por Lars von Trier, outro que conheceu de perto o abismo da depressão, o longa adota uma premissa de filme-catástrofe para fazer um sensível estudo de personagens, surgindo como uma espécie de Armageddon caso este tivesse sido dirigido por Ingmar Bergman. Dividido em duas partes que se concentram, respectivamente, nas irmãs Justine (Dunst) e Claire (Gainsbourg), o roteiro inicialmente acompanha a recepção de casamento da primeira, que, ocorrendo na mansão que a irmã divide com o marido John (Sutherland), logo se torna palco de confrontos e duras constatações para a noiva. Por sua vez, a metade final da projeção gira em torno da aproximação do planeta Melancolia e da ansiedade crescente de Claire diante da possibilidade do fim do mundo – um receio que ela tenta enfrentar ao mesmo tempo em que cuida da irmã caçula cada vez mais deprimida.

Com uma introdução que, assim como no trabalho anterior do diretor (Anticristo), é vista através de uma extensa sequência em câmera lentíssima com atmosfera de pesadelo, o filme abre sua narrativa nos apresentando a recortes dos momentos finais dos personagens – mas também a imagens simbólicas que representam seus tumultos internos (como ao vermos, por exemplo, Justine com seu vestido de noiva flutuando passiva e tristemente em um riacho). Durando cerca de dez minutos, este prólogo surge belo e poético, investindo em composições cuidadosas que, plasticamente irretocáveis, se contrapõem à abordagem que o cineasta adotará a seguir, quando passa a usar a câmera inquieta e na mão ao acompanhar a festa de casamento da protagonista, ressaltando, com isso, as tensões que afloram durante a recepção e os embates psicológicos que sabotam a alegria do evento.

Remetendo ao Festa de Família de seu colega de Dogma 95, Thomas Vinterberg, esta metade inicial de Melancolia é hábil ao nos apresentar aos velhos conflitos e às dinâmicas recorrentes daquela família – e é sintomático, por exemplo, perceber como Dexter (Hurt), pai da noiva, se refere a todas as mulheres que encontra como “Betty”, num sinal claro da despersonalização que emprega ao enxergar o sexo feminino e ao consequente desapego que exibe até mesmo com as filhas, que parecem ser tão intercambiáveis quanto a garçonete que o serve. Assim, não é difícil compreender a amargura exibida por sua ex-esposa, Gaby (Rampling), que vê o matrimônio de Justine como um passo rumo ao desastre e à infelicidade.

Não que a garota precise de muito incentivo para se sentir triste: inicialmente vista como uma moça alegre e sorridente que parece confortável ao lado do marido, Justine gradualmente revela seu tumulto interior e sua amargura incontrolável – e a insistência de seus familiares em perguntar-lhe “se está feliz” logo surge como indício de um histórico de preocupação diante do temperamento da noiva. Kirsten Dunst, aliás, oferece aqui provavelmente a melhor atuação de sua carreira ao ilustrar a angústia da personagem com sutileza e sensibilidade: parecendo ter sempre uma lágrima presa no canto dos olhos, Justine sorri de maneira mecânica por saber que aquele é o comportamento que todos esperam ver em uma recém-casada – e mesmo o discurso clichê de seu noivo é recebido com uma expressão jovial que mal disfarça sua constatação de estar presa a um homem medíocre. Ciente de que sua depressão é um fardo para a família, a protagonista reage de maneira defensiva sempre que a irmã ou o cunhado lhe exigem alegria (como se isto fosse algo possível de oferecer sob encomenda) – e é comovente ouvi-la se defendendo ao dizer que tem sorrido a noite inteira, já que compreendemos que esta manifestação externa não passa de uma máscara que serve apenas para torná-la mais solitária e sofrida.

Por sua vez, Claire tampouco se sai muito melhor: embora funcional e capaz de projetar uma aparência constante de estabilidade, a moça claramente se prende a regras e rituais como maneira de manter a própria ansiedade sob controle. Com uma expressão rígida e jamais indicando qualquer sinal de felicidade ou relaxamento, Charlotte Gainsbourg retrata a personagem como uma criatura que usa a família para disfarçar suas inseguranças – mas seu alheamento com relação àqueles que a cercam é denunciado pelo fato de não ser capaz de dizer se um de seus mais antigos criados (e seu aparente braço-direito) tem família ou mesmo de compreender por que este obviamente deseja passar os últimos dias de vida ao lado dos parentes.

Mas talvez o mais fascinante em Melancolia seja perceber como o desastre iminente parece alterar a dinâmica entre as irmãs: enquanto Claire vê seu sistema particular ruir, obrigando-a a encarar o medo e a incerteza, Justine parece encontrar uma serenidade curiosa diante da tragédia próxima – o que, de certa forma, não deixa de ser compreensível em alguém que, depois de uma vida dedicada à dor, finalmente tem a confirmação de que seu pessimismo era justificado. Assim, a abordagem visual de Lars von Trier se mostra impecável ao adotar, no ato final, uma calma na montagem e na composição dos quadros que reflete esta estranha paz interior da protagonista.

Repleto de simbolismos que rivalizam com a riqueza de ideias de Anticristo e Dogville (isto para não mencionar Dançando no Escuro e Manderlay, claro), Melancolia renderia facilmente páginas e páginas de interpretações a respeito de planos como aquele que traz Justine tentando caminhar enquanto plantas cinzentas se prendem às suas pernas e roupas ou ao fato de que, em certo momento, o campo de golfe de John exibe um “buraco 19” que ilustra de forma inteligente a imprevisibilidade de nossas vidas por mais que tentemos mantê-las num rumo pré-determinado. E se o nome do planeta prestes a destruir os personagens não deixa de ser óbvio (embora orgânico), infinitamente mais instigante é perceber como o cavalo favorito de Justine se recusa sempre a atravessar a mesma ponte, frustrando a garota já que, com isso, reflete a própria dificuldade da moça em cruzar certos obstáculos facilmente transpostos pelos demais, permanecendo assim eternamente presa ao seu sofrimento – e é igualmente importante que o animal seja chamado de Abraão, a origem das três principais religiões (leia-se: muletas, veículos de fuga) do planeta.

No entanto, mesmo que todos estes símbolos passassem despercebidos, Melancolia permaneceria como uma obra impactante por sua habilidade em retratar a depressão da protagonista com tamanha sensibilidade, desde sua dificuldade crescente em se mover até sua fuga através do sono, passando, claro, pelo triste momento em que, num ensaio de alegria ao provar seu prato favorito, ela percebe que até mesmo o gosto da comida parece ter cedido lugar à tristeza – e, assim como As Horas, este longa consegue levar o espectador a experimentar a mesma sensação de desastre e dor iminentes vivenciada por todos que se encontram envolvidos pelas correntes da depressão.

E, assim, não deixa de ser uma constatação doce e surpreendente perceber que até mesmo o mais pessimista dos cineastas, ainda que apontando que numa escala universal somos insignificantes como nossos sofrimentos, é capaz de reconhecer que, em última análise, temos algo extremamente valioso, insubstituível e reconfortante: o amor daqueles que nos cercam.

02 de Agosto de 2011

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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