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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
19/12/2008 01/01/1970 4 / 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
137 minuto(s)

Gomorra
Gomorrah

Dirigido por Matteo Garrone. Com: Salvatore Abruzzese, Gianfelice Imparato, Toni Servillo, Maria Nazionale, Salvatore Ruocco, Salvatore Cantalupo, Gigio Morra, Ciro Petrone, Marco Macor, Carmine Paternoster.

 

A camorra é uma facção napolitana do crime organizado italiano. Gomorra, como todos devem saber, foi uma das cidades que, de acordo com o Velho Testamento, foram destruídas por Deus em função do estilo de vida pecaminoso de seus habitantes. Por extensão, o jogo de palavras presente no título deste longa, candidato oficial da Itália ao Oscar 2009, não só deixa clara a extensão da ação da máfia em Nápoles como ainda sugere não haver solução para o domínio dos criminosos na região – a não ser, claro, a destruição completa de toda a província napolitana.

 

Iniciando-se com um massacre em um centro estético freqüentado por mafiosos em busca do bronzeamento perfeito e de unhas bem tratadas (afinal, estamos no século 21!), a narrativa de Gomorra está longe de se passar na escuridão dos restaurantes e porões mais associados ao imaginário coletivo do que representa a Máfia. Em vez disso, acompanha cinco histórias associadas direta ou indiretamente com a camorra: há os dois jovens que, idiotas ingênuos, resolvem enfrentar os chefões locais; o costureiro que, trabalhando numa confecção financiada pela máfia, comete o erro de se envolver com fabricantes chineses; o garoto que se vê seduzido pelo poder dos bandidos de sua vizinhança; o velho lacaio da camorra que se encontra no meio de uma guerra entre facções; e o sujeito que ganha a vida enterrando lixo tóxico em terrenos pertencentes ou sob a influência do crime organizado.

 

Inspirado no livro homônimo do jovem Roberto Saviano (que vive sob proteção policial em função das ameaças recebidas graças ao seu trabalho), o roteiro co-escrito por seis pessoas (incluindo Saviano e o diretor Matteo Garrone) desenvolve todas estas narrativas com segurança, mantendo o espectador curioso para compreender quando e como todos estes personagens irão se cruzar – empregando, para isto, a montagem inteligente e dinâmica de Marco Spoletini. Eventualmente, porém, percebemos que Gomorra não se interessa exatamente no entrecruzamento de suas tramas, mas sim em estabelecer um amplo (e assustador) painel da ação da camorra em várias camadas da sociedade italiana. Com isso, suas súbitas explosões de violência estabelecem que, em se tratando da máfia, nunca é possível saber até que ponto seus tentáculos venenosos se inseriram na sociedade e no dia-a-dia do país.

 

Empregando uma abordagem documental (eu diria quase “neo-realista”) ao desenvolver a narrativa, Garrone rodou a maior parte do filme nas locações descritas no belo trabalho investigativo de Saviano, usando figurantes locais e conferindo, com isso, ainda maior verossimilhança ao longa – e considerando que Saviano é um homem com a cabeça a prêmio, confesso que fiquei curioso acerca do desenvolvimento desta produção, que, suponho, deve ter enfrentado sua parcela de dificuldades em função da influência da máfia. Da mesma maneira, os personagens vistos ao longo da projeção são, de modo geral, pessoas aparentemente comuns que em nada lembram os capos gordos de cara furada de tantas produções do gênero (embora o chefão Zio, com sua traqueotomia que deve ser coberta sempre que ele fala, se aproxime disso).

 

Assim, Gomorra se concentra em figuras como Don Ciro, que, quase um burocrata em seu cotidiano de entregar dinheiro para famílias de soldados da máfia presos ou mortos em serviço, só percebe que é de fato um integrante do crime organizado ao se ver obrigado a escolher um lado na guerra que se estabelece entre dois grupos da camorra local – numa performance sofrida e tensa de Gianfelice Imparato. Enquanto isso, Salvatore Cantalupo encarna o costureiro Pasquale com um equilíbrio perfeito entre o orgulho que o sujeito sente por ver seu trabalho reconhecido e a humilhação de se ver sempre sujeito à pressão imposta pelas condições de trabalho criadas por seu aparentemente gentil patrão, que aceita grandes encomendas a um preço baixíssimo apenas para derrubar a concorrência. E se Toni Servillo ilustrou outro aspecto da corrupção na alta esfera italiana com sua performance brilhante no bom Il Divo (no qual interpretou o ex-Primeiro Ministro Giulio Andreotti), aqui ele assume um personagem bem mais discreto, mas nem por isso menos repugnante em sua falta de escrúpulos, já que seu Franco não vê problema algum em enterrar lixo tóxico ilegalmente em terrenos que, contaminados, provocarão graves doenças na população local.

 

Porém, são os personagens mais jovens que realmente merecem destaque em Gomorra – a começar pela dupla de imbecis Marco e Ciro, vivida por Marco Macor e Ciro Petrone (o fato dos personagens serem homônimos de seus intérpretes é outro elemento que remete ao neo-realismo, diga-se de passagem). Fãs do Scarface concebido por Al Pacino (observem seus figurinos), eles se enxergam como dois mafiosos saídos de um filme de Hollywood, o que é realçado, inclusive, pela voz rouca, “vitocorleônica”, de Marco. Aliás, não é à toa que eles surgem como admiradores de um criminoso icônico do cinema norte-americano, já que Garrone emprega esta visão “idealizada” dos rapazes como forte contraponto à crua realidade na qual eles estão inseridos e que nada tem de glamourosa. Tentando agir como bandidos durões, Marco e Ciro não passam de duas crianças imaturas que, presas num mundo de violência, se adequam a este através de suas fantasias – mas suas naturezas inegavelmente infantis vêm à tona quando os vemos chorando ao apanhar ou em êxtase ao brincarem, apenas de cueca, com as armas que roubaram. Seguindo esta mesma lógica, o garotinho Totò (Abruzzese) sonha em se tornar um mafioso por julgar que isto lhe trará poder e respeito, mas esta fantasia é duramente rompida quando ele constata as trágicas implicações de suas ações.

 

Retratando a polícia como uma entidade sempre distante e sem força alguma, Gomorra é impactante justamente por também evitar se concentrar nos poderosos que se encontram no topo da hierarquia da camorra, impedindo, assim, que romantizemos algum “chefão” como Tony Montana, Michael Corleone ou Al Capone. Em vez disso, somos forçados a acompanhar os peixes pequenos - aqueles que arriscam a vida nas ruas diariamente por alguns trocados enquanto seus Dons enriquecem em mansões ou – horror dos horrores - em residências oficiais do Estado.

 

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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