Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
21/02/2014 | 01/01/1970 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Universal Pictures | |||
Duração do filme | |||
117 minuto(s) |
Dirigido por Jean-Marc Vallée. Com: Matthew McConaughey, Jared Leto, Jennifer Garner, Griffin Dunne, Denis O’Hare, Steve Zahn, Michael O’Neill, Dallas Roberts, Kevin Rankin, Deneen Tyler.
Em diversas ocasiões, manifestei minha admiração por Matthew McConaughey como ator (algo que discuti ao escrever sobre Killer Joe), que parece ser capaz de interpretar qualquer tipo de personagem desde que, claro, este tenha um sotaque texano – o que não depõe necessariamente contra seu talento, bastando observar que o sotaque cockney do inquestionavelmente fantástico Michael Caine jamais o tornou menos brilhante. Ainda assim, confesso que foi com agradável surpresa que testemunhei o que McConaughey realiza neste Clube de Compras Dallas, onde encarna um personagem difícil e complexo com segurança absoluta, demonstrando controle admirável sobre as transições vividas pelo sujeito do início ao fim da projeção.
Baseado na vida de Ronald Woodroof (McConaughey) e escrito por Craig Borten e Melisa Wallack, o longa tem início em 1985, quando o protagonista é diagnosticado como portador do vírus HIV e, já com a saúde debilitada, recebe um prognóstico sombrio: terá, no máximo, mais 30 dias de vida. Inicialmente incrédulo por julgar que a AIDS era um mal exclusivo de homossexuais, Woodroof gradualmente aceita sua condição e passa a buscar formas de conseguir os novos medicamentos testados contra a síndrome – entre os quais figura o AZT. No entanto, ao perceber os graves efeitos tóxicos do remédio, ele logo descobre alternativas experimentadas por um ex-médico (Griffin Dunne, irreconhecível) que, com o diploma cassado, reside no México e, a partir daí, não só passa a se medicar como ainda decide contrabandear as pílulas para os Estados Unidos a fim de vendê-las para pacientes norte-americanos.
Encarnando sem reservas o tipo white trash tão comum no sul de seu país e que, vivendo em trailers, costuma se mostrar incrivelmente racista, misógino, homofóbico e politicamente reacionário, McConaughey já surge com uma aparência absurdamente fragilizada desde o primeiro minuto de projeção, quando, extremamente magro e acometido por tosses frequentes, exibe os sinais de devastação da AIDS mesmo sem ter consciência de estar doente. Apodrecido na aparência e no caráter, Ron Woodroof é um protagonista que, a princípio, parece esforçar-se para desafiar a capacidade do espectador em identificar-se com sua vulnerabilidade, já que responde às tentativas de ajuda por parte dos médicos com uma série de ofensas enquanto expõe um intelecto limitado e uma personalidade repugnante.
E é neste ponto que Clube de Compras Dallas realmente surpreende, já que, ao experimentar na própria pele o preconceito que nutria pelos outros, Woodroof parece ter um lado novo de seu temperamento despertado, revelando uma iniciativa insuspeita ao se esforçar para pesquisar informações sobre a síndrome e até mesmo ao se abrir aos poucos para o convívio com a travesti Rayon (Leto). Não que ele sofra uma transformação mágica e artificial, o que enfraqueceria o filme – e até o final o protagonista mantém vestígios de sua velha intolerância (ao se referir a um juiz de San Francisco como “veado”, por exemplo). Por outro lado, o fato de ter se tornado quase tóxico para seus antigos e igualmente intolerantes amigos leva Woodroof a perceber que, orientações sexuais à parte, ele tem mais em comum com Rayon do que com os indivíduos com quem costumava conviver. Além disso, é fascinante acompanhar a transição de contrabandista a ativista vivida por um homem que, acostumado a pensar apenas em si mesmo, é movido pela proximidade da morte a considerar também as necessidades dos outros – e Matthew McConaughey é habilidoso ao suavizar seu personagem aos poucos, permitindo que acompanhemos cada etapa de seu amadurecimento como ser humano.
O longa do canadense Jean-Marc Vallée não é apenas um estudo de personagem, porém, apresentando-se também como um retrato angustiante de uma época na qual a propagação da AIDS, associada ao preconceito que a doença e a homossexualidade despertavam, era contraposta à lentidão com que agiam os órgãos responsáveis pelos testes de novos medicamentos e sua liberação para consumo – o que apenas beneficiava a indústria farmacêutica ao criar uma demanda reprimida que, usando o desespero de pacientes à beira da aniquilação, não hesitava em lançar remédios subtestados e sobrevalorizados que intoxicavam os doentes ao mesmo tempo em que arruinavam suas contas bancárias. (E recomendo – mesmo não gostando do filme – o documentário Unidos pela Raiva: A História da ACT UP para que tenham uma ideia das dificuldades enfrentadas pelos portadores do vírus nestes primeiros anos da epidemia.)
Eficiente ao sugerir a passagem do tempo não só pela contagem na tela, mas principalmente pela montagem dinâmica e inteligente que emprega transições e raccords elegantes para indicar o avanço dos meses (observem, por exemplo, a sequência que traz Woodroof comprando remédios de um enfermeiro e percebam como seus movimentos se complementam entre os cortes rápidos), Clube de Compras Dallas também traz um ótimo trabalho de design de produção, que recria a época sem exageros estilísticos (um erro no qual incorre o recente A Trapaça) e ainda sugere detalhes importantes sobre o caráter dos personagens – como fica óbvio pelo trailer sujo e escuro de Woodroof ou pelo pequeno mas simpático e aconchegante apartamento da médica vivida com sensibilidade por Jennifer Garner. Enquanto isso, o desenho de som leva o espectador a experimentar a angústia do protagonista ao usar um zumbido incômodo e recorrente para evocar as crises de saúde provocadas pela AIDS.
Certeiro também ao adicionar importantes momentos de alívio cômico para evitar que o público se desligue da narrativa como forma de autopreservação, Vallée se equilibra com talento entre as piadas envolvendo a homofobia de Woodroof e o risco de tornar o próprio filme homofóbico – e, para isso, a performance tocante de Jared Leto se mostra essencial ao estabelecer que Rayon, mesmo que nem sempre responda às provocações e insultos do amigo, é forte o bastante para despertar respeito no outro, reagindo quando certas linhas são cruzadas e deixando claro que sua homossexualidade não é razão para ser tratado como inferior (um equilíbrio que, por exemplo, o brasileiro Crô jamais alcança, permitindo que o protagonista se torne um capacho e um estereótipo negativo do gay “inofensivo”). Em contrapartida, o cineasta jamais se entrega ao maniqueísmo barato como, por exemplo, ao evitar a tentação de trazer Woodroof e a doutora Eve dividindo uma garrafa de cerveja.
Mas é mesmo o belíssimo arco dramático do protagonista que sustenta Clube de Compras Dallas e comprova, para quem ainda pudesse ter alguma dúvida, o talento de Matthew McConaughey para carregar narrativas infinitamente mais intrigantes e complexas do que as rasas comédias românticas às quais se entregou por tantos e desperdiçados anos.
22 de Fevereiro de 2014