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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
12/10/2007 03/04/2008 5 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
115 minuto(s)

Tropa de Elite
Tropa de Elite

Dirigido por José Padilha. Com: Wagner Moura, Caio Junqueira, André Ramiro, Milhem Cortaz, Fernanda Machado, Fábio Lago, Fernanda de Freitas, Marcelo Escorel, Bernardo Jablonsky, Maria Ribeiro, Paulo Vilela.

Em 1999, durante a reveladora entrevista que concedeu ao seminal documentário Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles e Kátia Lund, o então capitão do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) Rodrigo Pimentel confessou estar “cansado” da batalha diária que travava contra o tráfico, já que nenhum resultado efetivo parecia estar sendo alcançado e os governantes não demonstravam o menor interesse em fazer algo que pudesse representar uma solução eventual para a criminalidade. Agora, oito anos depois, Pimentel assina, ao lado de Bráulio Mantovani (Cidade de Deus) e do diretor José Padilha (Ônibus 174), o roteiro de Tropa de Elite, que, assim, ganha contornos maiores de verossimilhança e, conseqüentemente, relevância.

O filme, que representa o primeiro trabalho de ficção (ou, digamos,“ficção”) de Padilha, acompanha a trajetória do capitão Nascimento (Moura), que, depois de anos à frente de um esquadrão do BOPE, já não consegue mais suportar o serviço: prestes a ser pai, ele já não vê sentido em arriscar a própria vida dia após dia sem perceber qualquer mudança no cenário da guerra contra os bandidos – e o enorme grau de tensão ao qual é submetido vem se manifestando através da Síndrome do Pânico. Com isso, Nascimento decide encontrar um substituto à sua altura, enxergando, nos aspirantes Neto (Junqueira) e Matias (Ramiro), duas boas possibilidades, já que, enquanto o primeiro exibe coragem e determinação exemplares, o segundo prima pela inteligência e pela cautela. Os aspirantes, por sua vez, encontram-se desiludidos com a polícia militar convencional, da qual fazem parte, já que a corrupção na corporação surpreenderia até mesmo Serpico: basta dizer que nem os motores das viaturas policiais são poupados da ganância dos corruptos.

Parcialmente rodado nos morros do Rio de Janeiro, Tropa de Elite conta com um tom de veracidade impressionante – e a logística envolvida nas filmagens de uma longa seqüência de tiroteio na favela certamente deve ter representado um desafio operacional para a produção digno das missões do BOPE (e o design de som do longa é brilhante, como podemos comprovar facilmente na tensa batalha entre policiais e traficantes). Da mesma maneira, o montador Daniel Rezende faz mais um magnífico trabalho não apenas ao intensificar a confusão e o desespero dos envolvidos no tiroteio (incluindo dezenas de civis surpreendidos no fogo cruzado), mas também no restante da narrativa, que encontra o ritmo correto tanto ao tornar-se mais lenta para se concentrar no desenvolvimento dos personagens quanto ao enfocar o treinamento longo e absurdamente desgastante ao qual Neto e Matias são submetidos. Além disso, ao empregar freqüentes cortes secos durante os diálogos em uma mesma cena, Rezende cria um tom constante de urgência e nervosismo, o que é fundamental numa história como esta.

Retratando a violência de seu universo sem fazer concessões, Tropa de Elite escancara a brutalidade praticada por ambos os lados, policiais e bandidos, tornando-se ainda mais assustador quando percebemos que estamos assistindo a recriações que, apesar de pavorosas, provavelmente ainda empalidecem diante do que realmente acontece naquela guerra. De um lado, não há como ignorar a estupidez dos métodos do capitão Nascimento e seus homens, que espancam suspeitos e não hesitam em sufocá-los com sacos plásticos a fim de obterem as informações que desejam; por outro, é arrepiante constatar a crueldade indizível dos traficantes – especialmente numa chocante seqüência na qual testemunhamos duas execuções que refletem bem a realidade pintada em Notícias de uma Guerra Particular e que rivaliza com a inesquecível cena que mostra a morte de um garoto em Cidade de Deus.

Mas Tropa de Elite não é apenas um filme sobre as ações do BOPE; sua trama principal serve como fio condutor para uma série de questionamentos extremamente relevantes sobre a natureza do tráfico e a perpetuação deste ciclo de violência que leva à “guerra particular” entre policiais e bandidos descrita por Pimentel no documentário de 99. Há, por exemplo, a triste ironia de uma classe média (e alta) que lamenta e protesta contra os índices cada vez mais altos de violência, mas que alimenta a fera ao comprar as drogas que sustentam o tráfico (e é patético ver um playboyzinho tentando ser íntimo da bandidagem ao empregar expressões como “É nóis, irmão!” sem perceber que, por um mínimo descuido, pode se transformar facilmente em estatística dos executados no morro). Em contrapartida, como o governo (federal ou estadual, não importa) pode esperar qualquer tipo de mudança quando contribui para criar os mecanismos que estimulam a corrupção endêmica na polícia, como a terceirização de serviços como o reboque (que imediatamente são dominados pelos próprios oficiais da corporação, agora “empresários”) ou ao não se preocupar com os baixos salários pagos para que os homens arrisquem suas vidas combatendo criminosos que nada têm a perder. O resultado é a ruína da Sociedade – figurativa e literalmente, como podemos ver na verdadeira zona de guerra repleta de destroços que serve de palco para uma cena do filme.

Contando com a soberba preparação de elenco feita por Fátima Toledo (ao lado de Sérgio Penna, uma mestra no assunto), Tropa de Elite traz o desconhecido André Ramiro como o “aspira” Matias, cujo arco dramático, percebemos depois, será o mais importante da narrativa. Inicialmente visto apenas como um “caxias” bem intencionado (observem como ele ergue a mão, em silêncio, para pedir a palavra durante um tumultuado debate no qual todos falam simultaneamente), Matias passa por uma transformação triste, mas – infelizmente – necessária para o tipo de trabalho que deverá fazer (e o fato da palavra “necessária” pertencer a esta frase indica o estado lamentável que a situação atingiu no Brasil). Já Caio Junqueira, um jovem veterano do Cinema (e pouco valorizado – ao menos, até agora), confere a Neto uma intensidade admirável, ilustrando a força das intenções de seu personagem ao mesmo tempo em que adiciona um certo grau de ingenuidade à sua atuação, tornando o aspirante mais próximo do espectador por levá-lo a descobrir, ao nosso lado, os podres de sua corporação. Em contrapartida, Milhem Cortaz, como o capitão Fábio, nada tem de ingênuo – mas o fato de seu personagem ser sempre esmagado por seus superiores permite que o enxerguemos não apenas como mais um corrupto, mas como uma figura relativamente trágica que tenta ser mais nobre e honrado, sem perceber que, infelizmente, já é tarde demais para isso.

Porém, é Wagner Moura quem (como não poderia deixar de ser) carrega Tropa de Elite. Exalando a autoridade de um homem que domina completamente os menores detalhes de seu trabalho, o capitão Nascimento é, talvez, o mais assustador dos personagens deste longa, já que, extremamente racional (e inteligente), manifesta uma compreensão exemplar sobre as nuances sociais e econômicas que levam cada peça daquela guerra ao seu lugar no tabuleiro, mas, ao mesmo tempo, parece cego ao seu próprio estado de brutalização absoluta, desculpando suas ações mais absurdas como um “mal necessário”. É claro que, por ser também o narrador do filme, ele tem a chance de apresentar sua visão e, conseqüentemente, aproximar-se mais do espectador – e caso a narração em off fosse retirada do longa, deixando que as ações do capitão falassem por si mesmas, tenho fortes suspeitas de que o consideraríamos um monstro irrecuperável.

Mas talvez seja esta a grande mensagem (e a deprimente constatação) apresentada por Tropa de Elite: a de que chegamos a um ponto no qual, lamentavelmente, a Sociedade precisa de monstros assim para garantir sua continuidade. 

 

Tropa de Elite: A Natureza da Besta

 

É fácil rotular Tropa de Elite e seu diretor, José Padilha, como “fascistas” – e, de fato, muitas pessoas sairão dos cinemas celebrando o cruel capitão Nascimento como um verdadeiro herói, um exemplo a ser seguido por todos os policiais que desejam livrar a Sociedade da bandidagem (basta ver a decepcionante carta enviada pelo apresentador Luciano Huck para a “Folha de São Paulo”, na qual, revoltado por ter sido assaltado, convoca o “capitão Nascimento” para dar um jeito na situação). Esta visão equivocada, porém, tem pouco a ver com o filme e muito a ver com o estado de apreensão constante no qual vivemos nos dias de hoje – e, ao erguer um enorme espelho diante de nossos rostos, o trabalho de Padilha reflete não só a realidade à nossa volta, mas (o mais importante para a discussão) nosso cansaço e nossa frustração diante desta. Condenar Padilha por criar um filme incomodamente verossímil é, sejamos francos, um gesto fútil de negação e fuga.

Aliás, mais do que isso: acusar o diretor de Ônibus 174, um dos documentários mais poderosos, complexos e reveladores já produzidos sobre nosso país, de “fascista” é, no mínimo, um sinal de preguiça mental – e Tropa de Elite, num mundo ideal, seria exibido em sessão tripla ao lado daquele filme e de Notícias de uma Guerra Particular, permitindo que o público tivesse uma visão mais ampla e desesperadora da situação enfocada neste longa. Pois o fato é que, apesar das muitas discussões promovidas sobre a violência crescente no país, o debate acaba geralmente sendo prejudicado pela ausência de algum componente importante à discussão – há sempre uma peça faltando no quebra-cabeças, seja esta o conhecimento sobre o caminho da droga ao passar por nossas fronteiras, a falta de soluções para uma política econômica que ofereça melhores perspectivas para os jovens das classes pobres, um sistema legal eficaz ou a compreensão dos mecanismos que funcionam como incentivo para a corrupção e a violência policiais.

Não que haja justificativas para a brutalidade de instituições que deveriam fazer cumprir a Lei; se vibramos com as torturas impostas pelos homens do BOPE (e, sim, muitos de nós têm exatamente esta reação), é porque sabemos, graças à narrativa, que o capitão Nascimento ao menos pegou a pessoa certa. Mas relembrem a cena em que o protagonista agride e sufoca um jovem do morro para tentar descobrir o paradeiro do chefe Baiano e imaginem o que aconteceria ao rapaz caso ele realmente não soubesse a resposta: seria barbaramente torturado e, em seguida, executado sem ter direito a qualquer tipo de defesa. Este é o problema (fora a questão básica: a inobservância de direitos humanos e jurídicos) dos métodos do capitão Nascimento, que prende, julga e aplica a pena (de morte) de acordo com seus próprios critérios: muitos completamente inocentes morrem no processo – e a máxima de que “violência gera violência” se faz valer, intensificando um círculo vicioso que, como já dito, não se limita a consumir apenas as vidas dos diretamente envolvidos.

Da mesma maneira, ainda que a discussão acadêmica destes tópicos tenha sua importância, nosso distanciamento daquele universo é grande demais para que possamos ter uma noção exata de tudo que está em jogo – é a velha história do “a teoria, na prática, é outra”. Além disso, há muitos, na comunidade acadêmica e fora desta, que parecem ignorar o fato de que a questão é muito mais antiga do que supõem (lembro-me, mais uma vez, da carta de Huck e sua afirmação de que “Está na hora de discutirmos segurança pública de verdade”, como se todos estivessem de braços cruzados à espera de seu chamado à ação): é infrutífero, por exemplo, questionar os métodos brutais da polícia quando, como diz Pimentel em Notícias de uma Guerra Particular, esta é o “único braço do Estado que sobe o morro”. Ora, o que poderíamos esperar nestas circunstâncias? Igualmente, é simples tachar Sandro do Nascimento, o seqüestrador do Ônibus 174, de “monstro”, mas quando conhecemos a história de sua vida repleta de tragédias, privações e violência, percebemos que, talvez, devêssemos dar graças por não termos um número bem maior de Sandros invadindo nossos ônibus e lares – afinal, como membros de uma sociedade grotescamente injusta, somos nós quem criamos estas “aberrações”. Como aponta Tropa de Elite em sua epígrafe, a situação é mais importante do que o caráter ao determinar as ações de um indivíduo.

Mas nem sempre (o mundo é composto de tons de cinza, não de preto e branco): como explicar, por exemplo, o envolvimento de jovens abastados das classes alta e média com o tráfico? “Quantas crianças nós vamos perder para o tráfico para que um playboyzinho possa fumar seu baseado?”, pergunta o filme, com propriedade. E se somos tão rigorosos em nosso julgamento sobre a violência policial, por que tantos se manifestam de forma tão leniente com relação ao tráfico (ou “movimento”)? Relembrando a ótima entrevista com Hélio Luz em Notícias... (mais um momento marcante do documentário de Salles e Lund), acreditar que traficante tem “consciência social” é uma falácia perigosa e contraproducente

Quanto ao BOPE, torna-se mais fácil compreender por que o espectador de Tropa de Elite parece aceitar com facilidade tantas atrocidades: farto da corrupção (na política e na polícia), é reconfortante ouvir a afirmação de que há algum componente da corporação que não tolera esta prática (“Faca na caveira e nada na carteira”, diz um PM convencional ao ver o BOPE se aproximar). Mas isto é fato ou lenda? Meu lado cínico tende a duvidar que tanta idoneidade seja possível, embora eu também não acredite que um policial corrupto tenha fibra suficiente para suportar o pesado treinamento dos “homens de preto”. De todo modo, isto não vem ao caso – o que importa é que a aparência de idoneidade (real ou não) leva o público a aceitar as ações do capitão Nascimento, como se o fato de ser incorruptível desse ao sujeito carta branca para torturar e matar. Ou seja: estamos tão fartos da violência quanto da corrupção, ambas endêmicas – e, com isso, perdemos de vista o que é “certo” e nos contentamos apenas com o “possível”. O problema é que uma vez ultrapassada a linha do que é aceitável, torna-se difícil voltar atrás.

Neste sentido, o momento-chave de Tropa de Elite é justamente aquele em que um personagem recebe a incumbência de executar friamente outro. Relembre a cena e verifique sua reação à mesma: você torceu para que o gatilho fosse apertado ou desejou que o indivíduo em questão se negasse a disparar a arma? De minha parte, confesso que fui seduzido pela primeira opção – e, mesmo horas depois do filme, não conseguia vencer a surpresa por ter tido este sentimento, já que tenho repulsa pela pena de morte e por qualquer ato de brutalidade.

E aí retornamos ao espelho gigante que mencionei no início deste texto – e, mesmo que não tenha gostado do que vi ali, devo agradecer à riqueza de conteúdo de Tropa de Elite por ter me obrigado a encará-lo. É infinitamente mais recompensador assistir a um filme que estimula a discussão e a auto-análise do que um que, por covardia ou falta de ambição, limita-se a seguir a corrente do politicamente correto.

10 de Outubro de 2007

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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