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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
18/08/2006 04/03/2006 4 / 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
92 minuto(s)

Anjos do Sol
Anjos do Sol

Dirigido por Rudi Lagemann. Com: Fernanda Carvalho, Bianca Comparato, Antônio Calloni, Otávio Augusto, Chico Diaz, Vera Holtz, Darlene Glória, Mary Sheyla, Maurício Gonçalves.

 

Em certo momento de Anjos do Sol, a cafetina Nazaré, interpretada por Vera Holtz, recebe uma nova “remessa” de garotas destinadas à exploração sexual e passa a examiná-las com cuidado. Entre as moças, encontra-se uma menina de nove ou dez anos – e, ao perceber aquilo, imediatamente antecipei que esta seria recusada pela cafetina por ser jovem demais para o “trabalho”. Pois esta é uma ilusão que o filme escrito e dirigido pelo estreante Rudi Lagemann estilhaça de cara: no submundo do tráfico de mulheres, a imaturidade biológica daquela criança acaba tornando-a justamente o item mais desejado (e, conseqüentemente, valioso) do lote comercializado por Nazaré, numa revelação chocante, doentia, mas, infelizmente, tragicamente real.

           

Inspirado em fatos narrados por jornais e revistas, o roteiro de Lagemann acompanha a triste trajetória de uma menina de 12 anos de idade, Maria (Carvalho), que é vendida por alguns trocados por seus pais miseráveis a um indivíduo que lhes promete arranjar um trabalho como doméstica para a garota. Na verdade, porém, ele é o fornecedor de Nazaré – e, depois de transportar um grupo de moças em uma jaula camuflada na carroceria de um caminhão, é para a cafetina que ele vende Maria e suas companheiras de infortúnio. A partir daí, as meninas recebem diferentes destinos, sendo vendidas a pedófilos endinheirados que, depois de usá-las, não hesitam em passá-las adiante a fim de recuperarem parte do que gastaram. A esta altura, as jovens já não são mais seres humanos, mas apenas mercadoria (e barata) com a qual todos parecem determinados a obter algum tipo de lucro.

           

Sem fazer quaisquer concessões ao otimismo romântico normalmente visto no Cinema, Anjos do Sol não demora a levar o público a perder as esperanças de que, de alguma forma, Maria vá manter sua pureza e inocência: depois de estuprada, a menina é encaminhada a um bordel no meio do nada e, já em sua primeira noite no local, é obrigada a atender a uma fila de homens sujos e grotescos interessados na nova garota do estabelecimento – e jamais parece ocorrer a alguém a iniciativa de questionar a pouca idade da moça, como se fosse perfeitamente natural ver uma jovem de 12 anos vendendo o corpo. Lidando com um tema chocante em sua essência, Lagemann acerta ao ilustrar o cotidiano de exploração de sua protagonista sem apelar para imagens mais explícitas e gráficas: de certa forma, é muito mais impactante testemunharmos o fluxo contínuo de clientes no quarto de Maria enquanto somos mantidos à distância, já que isto nos obriga a imaginar o terror vivido pela garota. Por outro lado, o cineasta-roteirista quase não reconhece as péssimas condições de higiene deste tipo de estabelecimento, parecendo contentar-se em fazer uma referência rápida e insuficiente à falta de proteção das jovens prostitutas ao incluir uma breve subtrama envolvendo uma moça com AIDS.

           

Porém, se é excessivamente cauteloso ao lidar com uma doença que logicamente deveria contaminar a maior parte de suas personagens, Lagemann demonstra uma mão pesadíssima em outros aspectos da narrativa, como na cena em que retrata as garotas brincando com sombras e se detém em um plano exagerado no qual vemos a silhueta de uma ave batendo as asas – num simbolismo artificial e clichê da liberdade sonhada pelas moças. Da mesma forma, a fim de retratar a bondade e a preocupação do agente de saúde vivido por Maurício Gonçalves, o roteiro obriga o ator a dizer um inacreditável “Eu vou continuar examinando as minhas meninas.” – uma fala inverossímil que irrita pela artificialidade.

           

De modo geral, no entanto, Anjos do Sol convence graças, em grande parte, às boas performances que oferece, como, por exemplo, a de Antônio Calloni, que encarna o impiedoso Saraiva. Habitualmente visto como um tipo gentil e bonachão, aqui Calloni surge surpreendentemente ameaçador e cruel – e as cicatrizes que seu personagem exibe no peito e no braço sugerem um passado que provavelmente mereceria ganhar um filme próprio. Porém, o grande trunfo do trabalho do ator é evitar que Saraiva se transforme em uma caricatura, o que poderia ter acontecido facilmente. Em vez disso, o sujeito possui uma complexidade fascinante, convencendo o espectador de que realmente não acredita agir de forma injusta ou particularmente violenta. Para Saraiva, suas ações são até mesmo generosas – e se parte para a violência, é simplesmente porque suas “protegidas” não o valorizam como deveriam. Em um elenco repleto de boas atuações (é bom ver a veterana Darlene Glória de volta ao Cinema e se divertindo com uma personagem engraçada em sua malandragem), Antônio Calloni é, sem dúvida alguma, o grande destaque.

           

Igualmente convincentes são as atuações das atrizes mais jovens: enquanto Mary Sheyla, que estreou em um pequeno papel em Cidade de Deus, assume com carisma o papel da contestadora (mas, paradoxalmente, conformada com sua situação) Celeste, a também novata Bianca Comparato impressiona com a força de sua personagem, exibindo um olhar intenso e desafiador numa composição que me fez pensar em uma Cláudia Abreu duas décadas mais jovem (e isto é um tremendo elogio, já que Abreu é uma de nossas atrizes mais talentosas). Em contrapartida, a estreante Fernanda Carvalho pouco faz como Maria, já que, além de praticamente não abrir a boca, falha ao não ilustrar bem o gradual amadurecimento da protagonista, cuja crescente amargura é sugerida pelo roteiro, mas jamais concretizada pela performance da atriz.

           

Comprometendo-se também em sua montagem desajeitada, que muitas vezes provoca saltos bruscos na narrativa e não consegue sugerir bem a passagem do tempo, Anjos do Sol tropeça principalmente nas seqüências que envolvem tentativas de fuga da protagonista, quando erra ao não estabelecer com eficiência a distância entre os perseguidores e suas presas (o que me fez pensar em Geração Roubada, que contém uma longa seqüência similar, saindo-se infinitamente melhor). Além disso, o roteiro desliza e revela um certo desleixo ao situar sua ação em um ano de Copa do Mundo apenas para, pouco depois, fornecer uma informação que ancora a história em 2001 (no caso, uma personagem diz que uma pessoa nascida em 1983 teria, “agora”, 18 anos de idade).

           

Ainda assim, Anjos do Sol recupera a força com sua conclusão corajosa e realista, na qual a maior vitória que sua protagonista pode desejar é a independência para vender seu corpo não para beneficiar terceiros, mas, ainda que de forma mínima, apenas a si mesma.
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17 de Agosto de 2006

 

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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