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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
19/09/2008 01/01/1970 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Duração do filme
111 minuto(s)

Direção

Michael Haneke

Elenco

Naomi Watts , Tim Roth , Michael Pitt , Brady Corbet , Devon Gearhart , Siobhan Fallon

Roteiro

Michael Haneke

Produção

Chris Coen

Fotografia

Darius Khondji

Montagem

Monika Willi

Design de Produção

Kevin Thompson

Figurino

David C. Robinson

Direção de Arte

Hinju Kim

Violência Gratuita
Funny Games

Dirigido por Michael Haneke. Com: Naomi Watts, Tim Roth, Michael Pitt, Brady Corbet, Devon Gearhart, Siobhan Fallon.

 

Não deixa de ser frustrante que, em seu primeiro projeto “hollywoodiano”, o brilhante cineasta alemão/austríaco/francês Michael Haneke tenha optado por simplesmente recriar, quadro a quadro (como Gus Van Sant em Psicose), um filme que comandou em 1997: o instigante Violência Gratuita. Ainda assim, embora preferisse ver Haneke emprestando seu talento a novos trabalhos, é um alívio constatar que ele não se vendeu como George Sluizer em sua constrangedora refilmagem de O Silêncio do Lago, já que esta nova versão de Funny Games não se desvia um centímetro sequer do original, que, como escrevi em um comentário publicado no Rotten Tomatoes há alguns anos, funcionava como um genial exercício narrativo e de estilo que, ao mesmo tempo em que mantinha o espectador tenso, obrigava-o a encarar a própria fascinação pela violência.

 

Trazendo dois jovens psicopatas possivelmente inspirados em Leopold e Loeb, o filme inicialmente nos apresenta à harmoniosa família formada por George (Roth), Ann (Watson) e Georgie (Gearhart, surpreendente em sua expressividade). Viajando para passar duas semanas em sua casa à beira do lago em Long Island, os três logo são tomados como reféns por Paul (Pitt) e Peter (Corbet), que passam a torturá-los enquanto sugerem que a família não chegará viva ao dia seguinte. Por que os rapazes agem desta maneira é algo que o filme não se preocupa em responder: pode ser um ato sem sentido, como indica o bom título em português, ou mesmo uma forma perversa de buscar prazer, como sugere o plano em que um dos jovens segura um taco de golfe diante da virilha, como se exibisse uma enorme ereção – ou, possivelmente, uma combinação de ambos. Seja como for, a história do longa não importa de fato, já que é empregada apenas para permitir que Haneke se entregue a um exercício narrativo que explora e condena, simultaneamente, o maniqueísmo do gênero e do Cinema de modo geral.

 

Cineasta que jamais escondeu seu prazer em manipular descaradamente o espectador (como apontam os brilhantes Caché e Código Desconhecido – este último, trazendo uma seqüência sensacional com Juliette Binoche que confunde o público em sua tensão crescente), Michael Haneke aqui esfrega na cara da platéia tudo o que está fazendo, como se se esforçasse ao máximo para que nos déssemos conta de todos os seus artifícios como contador de histórias – e este esforço já começa com o surgimento do título, que traz consigo os acordes incômodos e inesperados de um rock pesado que se contrapõe à relaxante ária que ouvíamos até então (e que, de certa forma, simboliza a intromissão dos jovens assassinos no cotidiano pacato daquela família).

 

Sempre adepto de planos longos, o cineasta repete, nesta refilmagem, o impressionante plano de quase dez minutos de duração do original, quando acompanhamos a mulher da família (aqui vivida com entrega absoluta por Naomi Watts) tentando assimilar a brutalidade do que acabara de acontecer enquanto busca se libertar e soltar o marido – algo que confere, pela simples ausência de cortes, um tom de urgência, angústia e verossimilhança à cena. Da mesma forma, quando George confronta os rapazes pela primeira vez, Haneke evita os cortes enquanto mantém sua câmera às costas de Tim Roth, forçando o público a encarar os criminosos como se estivéssemos ao lado do sujeito e aumentando, assim, a identificação com o personagem. E se jamais se mostrou adepto da utilização de trilhas sonoras que comentam a narrativa, aqui o diretor praticamente emprega apenas sons diegéticos – e quando ouvimos um acompanhamento instrumental durante a perseguição ao pequeno George, isto se deve à iniciativa do cruel Paul, que se encarrega de ligar o som para perturbar o garoto.

 

É perfeito, diga-se de passagem, que Paul assuma a tarefa de acionar o aparelho de som, já que, para todos os efeitos, ele é o narrador de fato do filme, chegando a dirigir-se diretamente ao público em algumas ocasiões, quando pergunta, entre outras coisas, se estamos “do lado” da família que está aterrorizando (é claro que estamos e ele sabe disso). Assumindo-se como personagem e vilão, Paul mantém um tom sempre controlado e divertido por ter plena consciência de estar sendo observado e julgado pelo espectador – e é através deste personagem que Haneke comenta o poder ilimitado do cineasta ao controlar a narrativa da maneira que julga mais eficaz para conduzir, agradar e frustrar o público ao seu bel-prazer. Assim, quando Paul ordena que Ann recite uma prece ao contrário, está prenunciando claramente o que virá a seguir, quando (não leia o restante desta frase caso ainda não tenha visto o filme) provará seu poder absoluto sobre o longa ao rebobiná-lo para reverter um incidente que lhe desagradou.

 

Com relação a este momento específico de Violência Gratuita, aliás, é curioso observar que o tiro de espingarda disparado por Ann representa o único instante em que um ato de violência é visto em quadro, já que absolutamente todos os demais ocorrem fora de campo, sendo apresentados apenas através do som. E não é à toa que aquele que é visto pelo público surge, também, como o único que oferece alguma satisfação, já que tem, como vítima, um dos vilões – e é desta forma que Haneke não apenas escancara a manipulação constante feita pelo Cinema como comenta a hipocrisia natural do espectador, que não hesita em abraçar a violência quando esta se apresenta catártica. No entanto, depois de permitir, por um breve momento, que a platéia exulte com a mesma violência que condenaria em outras circunstâncias, o diretor cruelmente reverte (literalmente) o que acabara de fazer – e a ira experimentada pelo espectador é resultado do reconhecimento tardio de ter sucumbido à manipulação descarada do filme.

 

Mas a outra questão igualmente interessante que Violência Gratuita propõe é: por que a morte de um ou dos dois vilões deveria nos satisfazer? Não se trata, tudo aquilo, de pura ficção? George, Ann e Georgie não são mais ou menos reais do que Paul e Peter e, assim sendo, por que deveríamos nos importar com o que acontecerá com qualquer um deles? Por que abraçamos constantemente a ficção e nos emocionamos com histórias e personagens que reconhecemos como irreais? E, mais uma vez, por que uma possível “vitória” dos vilões deveria nos aborrecer, já que seria um evento tão arbitrário, determinado de acordo com a vontade particular do narrador, quanto um aguardado final feliz?

 

Isto remete, aliás, ao desfecho de Desejo e Reparação (e não foi por acaso que citei Funny Games ao escrever sobre aquele longa): em que o final “fictício” criado por Briony difere do final “real” determinado pelas mortes de Robbie e Cecilia? Por que um seria satisfatório e o outro não, se ambos são igualmente fantasiosos e arbitrários? E por que a punição de Paul e Peter seria menos frustrante do que vê-los livres e vitoriosos?

 

Ao propor questões como estas e forçar o público a reconhecer a manipulação constante que engole sem protestos em cada filme que vê, Violência Gratuita (original e refilmagem) se torna um exemplo interessante de produção que não se interessa em “agradar” o espectador (ao contrário, é frustrante ao extremo), mas sim em se apresentar como objeto de estudo e apreciação para aqueles que se interessam pela linguagem pura do Cinema. 

20 de Setembro de 2008

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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