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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
11/11/2005 19/04/2006 4 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
99 minuto(s)

Cinema, Aspirinas e Urubus
Cinema, Aspirinas e Urubus

Dirigido por Marcelo Gomes. Com: Peter Ketnath, João Miguel, Hermila Guedes, Mano Fialho, Daniela Câmara, Paula Francinete, Irandhir, Osvaldo Mil, Fabiana Pirro.

Há uma simplicidade na história de Cinema, Aspirinas® e Urubus que encanta. Em sua superfície, o filme é pouco mais do que um road movie que traz dois homens com personalidades e visões de mundo diferentes convivendo um com o outro durante um certo período de tempo, enquanto viajam pelo interior nordestino (na década de 40) exibindo filmes publicitários que divulgam as proezas de um `novo` medicamento conhecido como `aspirina`. Porém, como eu disse, o filme é isto apenas em sua superfície, já que a simples convivência de Johann e Ranulpho é o bastante para que o roteiro trace um painel sensível sobre miséria, choque de culturas, guerra e nossa aparentemente infindável capacidade de resistência.


Escrito por Karim Aïnouz, Paulo Caldas e pelo diretor estreante Marcelo Gomes, Cinema, Aspirinas® e Urubus enxerga o Brasil através de dois pontos de vista aparentemente conflitantes: o de Johann (Ketnath), que se mostra fascinado com tudo o que vê, já que mesmo os incidentes mais prosaicos o deixam maravilhado; e o de Ranulpho, que não enxerga virtude ou beleza em uma terra que o condenou à fome, à sede e à pobreza (`No Brasil, nem guerra chega!`, ele reclama). E como o cineasta faz questão de preencher o filme com figurantes locais e com atores desconhecidos, este retrato de um Brasil humilde acaba ganhando força e deixando a narrativa mais real: para um estrangeiro, é fácil se deixar arrebatar por uma iguaria regional; para nós, a vergonha de testemunhar o sofrimento de um compatriota torna esta sedução mais difícil.

Porém, o longa está longe de assumir uma postura de `denúncia`. Sim, suas mensagens são tocantes e convincentes, mas justamente por serem apresentadas de forma sutil, como se fossem apenas detalhes acrescentados casualmente em uma revisão do roteiro. Quando Johann encontra um sertanejo na estrada e pergunta se ele está indo `para lá ou para cá`, numa oferta de carona, a resposta é simples: `Vou ficar aqui mesmo.`. Nossa reação imediata a esta fala é o riso, evidentemente, mas pense um pouco no que acabou de acontecer e perceba o sutil significado do incidente: para o alemão, é impossível acreditar que alguém pudesse morar naquele lugar inabitável, enquanto o brasileiro encara a situação com uma resignação admirável, como se a dúvida do estrangeiro não fizesse sentido algum.

Aliás, a fotografia de Mauro Pinheiro Jr. realça a aridez das locações já pouco hospitaleiras ao trabalhar com dois aspectos essenciais: a superexposição, que salienta a temperatura sufocante, e a dessaturação de cores, que ajuda a ilustrar a falta de vida e alegria naquele ambiente. Da mesma forma, as cenas noturnas são rodadas com um mínimo de iluminação, afastando qualquer sugestão de civilização e modernidade.

Exibindo uma química impecável que contribui para o sucesso da narrativa, Peter Ketnath (que fala o português com um sotaque levíssimo) e João Miguel dividem a cena com naturalidade, estabelecendo uma dinâmica que conquista o espectador, atingindo seu ponto alto na cena em que, durante à noite e bêbados, discutem como agiriam caso estivessem lutando na guerra que, naquele momento, ameaça o mundo. É um momento engraçado e emocionante que comenta, com a delicadeza habitual do filme, a natureza bestial do conflito armado.

Miguel, em particular, surge como a grande revelação de Cinema, Aspirinas® e Urubus (ele também participou do recente Cidade Baixa): com um timing cômico perfeito, ele encarna Ranulpho como um homem bom, mas amargo. Sua insistência em negar carona para outro sertanejo que atravessa o caminho de Johann (que lhe oferecera transporte há pouco) pode, a princípio, denotar um egoísmo repulsivo, mas a verdade é que, já suficientemente experimentado na arte da sobrevivência, ele está apenas pensando em sua preservação, que poderia ser ameaçada por um adversário. Ainda assim, o filme evita a armadilha fácil de transformar o nordestino em alvo de piada fácil através de outra cena aparentemente simples, mas que permite uma leitura muito mais profunda: ao narrar sua passagem pelo Rio de Janeiro, Ranulpho comenta que `nordestino só serve para mangação` – e, se pensarmos nas vezes em que já fomos levados a rir de personagens como este, não poderemos negar a propriedade do que ele diz. Contudo, ao levar o público a rir de Ranulpho (até mesmo desta sua afirmativa), o longa praticamente faz um exercício de metalinguagem, revelando sua própria fragilidade neste aspecto – o que, paradoxalmente, fortalece sua mensagem. E como ignorar a beleza simbólica do plano em que Ranulpho estende a mão diante da lente do projetor e vê a imagem do Rio na palma de sua mão?

Esta é a virtude maior de Cinema, Aspirinas® e Urubus: divertir o espectador com sua leveza, mas, ao mesmo tempo, cutucar as feridas de uma sociedade desigual e preconceituosa. De acordo com os créditos do filme, o roteiro foi baseado em um `relato de viagem` feito por um certo `Ranulpho Gomes` – e é esta informação que confere sentido ainda maior ao projeto. Todos os dias, vivenciamos acontecimentos que, sozinhos, pouco significam, mas que, no contexto de nossas existências, adquirem significação própria e revelam muito sobre quem somos. Assim, é apenas apropriado que Cinema, Aspirinas® e Urubus, com seu título absurdo e sua narrativa aparentemente corriqueira, seja, de fato, uma história real.

11 de Novembro de 2005

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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