Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
26/01/2007 | 01/01/1970 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
139 minuto(s) |
Mel Gibson precisa se submeter com urgência a um tratamento psiquiátrico – e, quando digo isso, não me refiro ao seu já comprovado anti-semitismo (que discuti, em parte,
Em Apocalypto, ele e o co-roteirista Farhad Safinia criam um filme de ação que, à primeira vista, é bastante atípico: ambientada no início do século
A rigor, Apocalypto poderia se passar em praticamente qualquer época ou lugar, já que as referências históricas ao império Maia não são realmente orgânicas à trama – além de trazerem uma infinidade de erros factuais que invalidam qualquer pretensão do projeto em se estabelecer como uma espécie de documento sobre a época. Além de combinar características de vários períodos e lugares diferentes da vasta civilização criada pelos Maias, o roteiro chega a apresentar incidentes ocorridos já durante o domínio Asteca, como é fácil constatar apenas pela data em que a história se passa (que pode ser inferida a partir do desfecho da história). Por outro lado, ao decidir utilizar o iucateque (um idioma maia moderno) em vez do inglês, Gibson confere uma autenticidade imensa (mesmo que paradoxalmente falsa) ao filme, ajudando o espectador a mergulhar naquele mundo. Ainda assim, o diretor-roteirista mantém uma quantidade reduzida de diálogos, apostando principalmente na ação para prender o público.
Outra decisão particularmente acertada diz respeito ao primeiro ato do longa, durante o qual o roteiro se esforça ao máximo para estabelecer uma identificação entre o espectador e os personagens – que, embora tenham cultura, língua e visual tão distantes dos nossos, são retratados como indivíduos comuns que brincam irreverentemente uns com os outros, enfrentam problemas familiares (até mesmo com a sogra!) e vivem harmoniosamente em uma comunidade que estabeleceu um equilíbrio respeitoso com a Natureza. (Aliás, os primeiros 20 minutos de Apocalypto me fizeram lembrar da introdução do ótimo Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, que também recria o cotidiano de uma pequena comunidade de índios com bastante verossimilhança.) Porém, a chave para que realmente nos identifiquemos com o drama de Pata de Jaguar reside em seu desespero para salvar a família – um drama obviamente universal.
Contando com um elenco composto por atores amadores, o filme impressiona não apenas em função do talento destes intérpretes, mas também graças à expressividade dos rostos maltratados pelo tempo e, provavelmente, pelas difíceis condições de vida daquelas pessoas. Quando vemos a tribo de Pata de Jaguar reunida em torno de uma fogueira, mal podemos desviar os olhos daquelas faces enrugadas, dos dentes apodrecidos pela falta de cuidados e das marcas deixadas por um estilo de vida perigoso e primitivo, desde o braço mutilado de um ancião ao olho perfurado de uma velha senhora. Ao mesmo tempo, os protagonistas contam com traços infinitamente mais harmoniosos que não ocultam as preocupações estéticas típicas de Hollywood – e é impossível não nos encantarmos com o pequeno e expressivo Carlos Emilio Baez, que vive o filho do herói.
Conduzindo a narrativa com sua segurança habitual, Mel Gibson mantém a câmera sempre em movimento, conferindo ritmo ao longa também através da montagem ágil, que deixa evidente a cuidadosa preparação feita pelo cineasta e seu diretor de fotografia, Dean Semler, já que cada plano é perfeitamente complementado pelo seguinte (num contraponto curioso com outra estréia da semana nos cinemas brasileiros, o fraco A Grande Família). Já na abertura do filme, aliás, Gibson comprova sua inteligência ao mergulhar o espectador calmamente na selva em que a maior parte da aventura transcorrerá: em um travelling lento, o diretor se aproxima da mata enquanto o ótimo design de som envolve o público com o zumbido de moscas, os estalos das árvores e o leve sopro do vento. Em contrapartida, o cineasta acaba exagerando na utilização de rack focus e de câmeras lenta e subjetiva (ele chega a incluir o ponto de vista de uma cabeça decepada!), além de não resistir ao susto barato provocado pela entrada abrupta de um macaco em um determinado quadro.
Tecnicamente brilhante, Apocalypto se beneficia também por contar com uma excepcional direção de arte, que recria uma civilização conhecida pela imponência de suas construções; com figurinos impecáveis (o traje dos guerreiros maias, com seus enfeites formados por mandíbulas, provoca forte impressão; e, é claro, com a inventiva maquiagem, que inclui as tatuagens das centenas de figurantes, os elaborados penteados das mulheres vistas na cidade maia e os corpos cobertos de pó branco dos escravos que trabalham sem descanso para construir aquela metrópole primitiva. Enquanto isso, a trilha sonora composta por James Horner aposta acertadamente na utilização de instrumentos de percussão e de vocais guturais, ao passo que o já citado Dean Semler fotografa o longa com uma beleza naturalista invejável – e o mais incrível é que o projeto foi totalmente rodado com câmeras digitais (algo que, confesso, só descobri ao consultar a ficha com os aspectos técnicos da produção, o que comprova a qualidade do trabalho de Semler).
Mas a principal característica de Apocalypto, como não poderia deixar de ser, é mesmo a intensidade com que a violência é retratada: gráfico desde o início, quando acompanhamos uma caçada a um porco selvagem, o filme segue a “cartilha Mel Gibson” ao jamais poupar o público das conseqüências sangrentas das ações dos personagens – e quando um prisioneiro é atirado em um precipício, Gibson faz questão absoluta de acompanhar a queda até seus momentos finais, retratando cada pancada ao longo do trajeto. Da mesma maneira, quando um guerreiro é atacado por um jaguar, o diretor não sucumbe à tentação de desviar a câmera no último segundo, obrigando o espectador a testemunhar a carne sendo arrancada do rosto da vítima. Em outras palavras: o sadismo que permeava Coração Valente e, em maior grau, A Paixão de Cristo volta a se apresentar em Apocalypto – e fico curioso para saber se, ao retratar a imensa vala comum com dezenas de cadáveres em decomposição, Gibson percebeu ter criado uma imagem que remete com tanta clareza ao Holocausto.
Estranhamente, depois de tanto esforço para criar um tom sempre realista, o diretor acaba se boicotando parcialmente ao incluir a intervenção de uma pequena profeta que antecipa vários incidentes da história – algo que destoa do restante da narrativa. Além disso, a conclusão do longa busca uma ironia que, por ser forçada demais, enfraquece a si mesma, o que é uma pena.
Finalmente, faço questão de ressaltar que estava certo ao escrever, em março de 2004, que a censura 14 anos atribuída ao violentíssimo A Paixão de Cristo denotava uma hipocrisia alarmante por parte de nossas autoridades: “Caso o protagonista desta produção não fosse Jesus Cristo, sou capaz de apostar que nenhum menor de 18 anos seria admitido nas salas brasileiras”, argumentei. Pois bem: tão violento (talvez menos!) quanto o filme anterior de Gibson, Apocalypto foi recomendado para maiores de 16 anos. Ao que parece, nossos jovens estão preparados para testemunhar a bárbara tortura de um símbolo religioso, mas não a de pobres nativos da América Central.
Observação: Em certo momento, o vilão do longa é quase atingido por uma árvore que cai em seu caminho e grita: “Estou andando aqui!”. Estou louco ou esta foi uma referência à cena
25 de Janeiro de 2007
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