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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
11/01/2008 14/09/2006 2 / 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
145 minuto(s)

A Espiã
Zwartboek

Dirigido por Paul Verhoeven. Com: Carice van Houten, Sebastian Koch, Thom Hoffman, Halina Reijn, Derek de Lint, Waldemar Kobus, Christian Berkel, Dolf de Vries, Peter Blok.

 

No início de A Espiã, novo filme do diretor Paul Verhoeven (e seu primeiro trabalho a ser rodado em sua Holanda natal em mais de 20 anos), somos informados de que o que estamos prestes a assistir é “inspirado em fatos reais”. Pois bem: realmente houve um movimento de resistência aos nazistas naquele país e, de fato, muitos judeus ricos foram emboscados e mortos depois de enganados pela promessa de uma fuga para o exterior (os autores das promessas, geralmente em cumplicidade com oficiais nazistas, queriam apenas roubar seu dinheiro e suas jóias). Fora isso, as bobagens presentes no filme são fruto da imaginação de Verhoeven e de seu co-roteirista Gerard Soeteman, que provavelmente torceram para que os absurdos por eles inventados se beneficiassem de nossa credulidade despertada pelo tal aviso inicial.

 

Depois de uma breve introdução na qual encontramos a protagonista, Rachel (van Houten), dando aulas para um grupo de crianças num kibbutz em Israel, somos levados a um longo flashback que reconta a trajetória da moça, uma ex-cantora, durante os últimos anos da Segunda Guerra. Separada da família e escondida na casa de uma família católica (que a obriga a decorar versos da Bíblia em troca de suas refeições), ela logo recebe a oferta de ajuda para fugir da Holanda ocupada pelos nazistas, mas acaba sendo vítima, juntamente com os pais e o irmão, de uma armadilha que custa a vida destes, deixando-a sozinha no mundo. Algum tempo depois, ela acaba se juntando à resistência e, agora sob o nome Ellis de Vries, recebe a missão de se infiltrar no escritório do chefe da Gestapo no país, Ludwig Müntze (Koch), tornando-se amante deste.

 

Como não poderia deixar de ser, já que estamos falando de um filme de Verhoeven, a atriz holandesa Carice van Houten passa boa parte da projeção expondo partes de seu belíssimo corpo – e, em certo momento, vemos até mesmo seu cuidado com os detalhes ao tingir os pêlos pubianos. Ciente do poder que sua beleza exerce sobre os homens, ela não hesita em usar a sensualidade para alcançar seus objetivos, flertando com soldados (em determinado instante, ela mostra, divertida, as pernas para um grupo deles) e oficiais nazistas sem parecer temer ser descoberta. Mas que a nudez constante da atriz não encubra seus méritos como intérprete: ao longo de A Espiã, van Houten constrói uma personagem complexa e inteligente que, sempre determinada, faz de tudo para manter-se viva e derrotar os inimigos, exibindo grande rapidez de raciocínio e uma audácia admirável.

 

Até se apaixonar pelo nazista que deveria espionar, claro.

 

Não me interpretem mal: é claro que seria perfeitamente possível que uma judia vitimada diretamente (e recentemente) pelos asseclas de Hitler se apaixonasse por um oficial nazista – a alma humana, em sua complexidade fascinante, é capaz de permitir contradições maravilhosas (ou pavorosas, como queiram). Porém, em vez de buscarem desenvolver o relacionamento de Ellis e Müntze de forma natural ou mesmo de investirem numa justificativa à la Síndrome de Estocolmo ou mesmo numa atração sadomasoquista obsessiva como no intrigante O Porteiro da Noite, de 1974, os roteiristas acabam optando pelo reprovável: tentam transformar Müntze em um “nazista bonzinho”. Assim, vemos o sujeito se recusando a permitir execuções (embora isto seja fruto de um acordo que ele tenta fazer com a resistência) e somos brindados com sua narração sobre a perda da família num bombardeio britânico – e aqui o filme prefere não mencionar que ele provavelmente não foi morto porque estava massacrando judeus em outro lugar sob ordens do Führer. Como se não bastasse, Verhoeven e Soeteman chegam mesmo a tentar converter Müntze em um herói trágico no terceiro ato, o que ultrapassa a fronteira do ridículo.

 

Mas não é só: o roteiro falha ao não responder a mais básica e importante das perguntas: por que um alto oficial nazista se arriscaria a manter uma relação com uma judia? Há um processo de negação ocorrendo ali e, afinal, Ellis é uma mulher extremamente desejável, mas, por mais que fosse guiado por sua libido, não creio que Müntze daria à moça tanta liberdade a ponto de que esta pudesse realmente comprometê-lo, custando sua vida. Infelizmente, mais uma vez os roteiristas tentam trapacear: quando o nazista confronta a garota sobre sua identidade, a conversa que se segue (e que deveria ser o momento dramático mais relevante da narrativa) ocorre fora de cena – e, com isso, jamais sabemos o que Ellis disse para justificar suas ações. Ela assumiu sua condição de espiã? Ou apenas denunciou os roubos do repulsivo oficial Günther Franken (Kobus), como vemos na seqüência seguinte? Ao negar ao espectador o direito de testemunhar aquela conversa, o filme revela mais do que sua fragilidade como narrativa; expõe, também, sua covardia.

 

E já que citei o “repulsivo” Franken, é preciso apontar que, entre seus truques maniqueístas, Verhoeven emprega sem qualquer vergonha a caricatura como forma de guiar o público: se Müntze é vivido com charme pelo talentoso Sebastian Koch (que também se destacou no recente A Vida dos Outros), Franken, como grande vilão, naturalmente é retratado de forma grotesca como um sujeito feio, gordo, calvo, com dentes separados e uma cicatriz no rosto (a única maneira de piorá-lo seria colocando parafusos em seu pescoço). Da mesma maneira, todos que se colocam contra a heroína ganham contornos monstruosos, como a turba que a aprisiona por julgá-la colaboradora dos nazistas e que (provavelmente inspirada por Carrie, a Estranha) chega a encharcá-la com...

 

Deixemos para lá. A verdade é que, em A Espiã, Verhoeven simplesmente mantém sua obsessão habitual com sexo e violência (geralmente combinando os dois), mas sem qualquer sofisticação narrativa ou visual. Aliás, sua deselegância chega a surpreender, já que ele emprega zooms pavorosos para retratar o choque da protagonista em alguns momentos e não consegue sequer criar uma transição natural para o terror que os membros da resistência devem ter experimentado quando são surpreendidos por um grupo de nazistas, já que, depois de um rápido tiroteio, eles continuam a trabalhar como se nada tivesse acontecido, chegando a fazer leves comentários sobre a perícia de um deles com as armas. E mais: a artificialidade da direção de Verhoeven chega a tornar ridículos alguns momentos que deveriam ser dramáticos ou tensos: observem, por exemplo, quando alguém joga um pedaço de carvão para despistar um guarda nazista e percebam como este imediatamente estica o pescoço exageradamente enquanto se afasta para investigar o barulho – uma cena que poderia ter saído de Top Secret!, a genial sátira aos gêneros espionagem e “filme de guerra” que o trio ZAZ dirigiu em 1984. E o que dizer do instante em que outro soldado investiga a traseira de um carro com uma lanterna e simplesmente não vê nada de estranho no imenso volume “despistado” por um cobertor que ali se encontra?

 

Em contrapartida, os aspectos técnicos de A Espiã merecem aplausos – especialmente no que diz respeito aos figurinos impecáveis, à maquiagem (com seus penteados de época) e, é claro, à direção de arte (incluindo o maçarico desajeitado da década de 40 que os membros da resistência são obrigados a carregar durante uma missão). Por outro lado, a trilha sonora de Anne Dudley é pavorosamente carregada e excessiva, jamais permitindo que a narrativa se desenvolva sem seus comentários melodiosos – e, para piorar, em vários momentos a trilha de Dudley transforma este suposto drama de época em um filme de ação comum.

 

Isto é, até que os roteiristas resolvem transformá-lo num mistério do tipo “quem é o culpado?”, com direito até mesmo a um personagem que, fora de cena, encontra o vilão anônimo e diz: “Você?”. Porém, isto nem se compara ao desastre que é a revelação da identidade do tal vilão – algo que, se relembrarmos a trama, expõe buracos imensos na narrativa (um exemplo: tente explicar o que acontece na seqüência em que a resistência busca libertar companheiros presos). Como se não fosse o bastante, o roteiro ainda abusa das coincidências para manter a narrativa caminhando, o que acaba por destruir seus esforços.

 

Buscando incluir uma mensagem irônica ao comentar brevemente os conflitos intermináveis envolvendo o povo judaico (vide o eterno confronto entre Israel e a Palestina), A Espiã tenta ao máximo ser levado a sério. Mas como isso é possível em um filme cujo conceito de tensão reside em mostrar a mocinha comendo desesperadamente – e sob acordes dramáticos - uma barra de chocolate?

 

12 de Janeiro de 2008

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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