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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
29/04/2005 12/11/2004 4 / 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
118 minuto(s)

Kinsey - Vamos Falar de Sexo
Kinsey

Dirigido por Bill Condon. Com: Liam Neeson, Laura Linney, Peter Sarsgaard, Timothy Hutton, Chris O’Donnell, John Lithgow, Dylan Baker, Oliver Platt, Tim Curry, William Sadler, Veronica Cartwright, Lynn Redgrave.

Há algum tempo, depois de assistir à versão `sem cortes` de Calígula, comentei em meu blog (sim, aderi à moda) a irritação que sinto ao perceber que vivemos em uma sociedade que, ao mesmo tempo em que tolera graus absurdos de violência (real e fictícia), logo se coloca em posição de ataque ao menor sinal de que um tema vagamente relacionado ao sexo será abordado. A lógica que tolera o sangue e condena o prazer é complexa e distorcida – e se impera ainda hoje, em pleno século 21, imaginem como funcionava no final da década de 40 e início da de 50, quando o professor Alfred Kinsey publicou seu detalhado livro sobre a sexualidade feminina, gerando uma polêmica tão grande que acabou comprometendo sua carreira e sua saúde. Afinal, a cuidadosa pesquisa de Kinsey visava retificar, entre outras coisas, a forma perversa com que os jovens recebiam suas primeiras informações sobre o sexo: em `palestras` nas quais os fatos eram alterados pelo moralismo barato visando simplesmente incentivar a abstinência através do terror. Transar era algo terrível, ameaçador; chega a ser inexplicável como a humanidade conseguiu se perpetuar.

É difícil, para os jovens contemporâneos (habituados a assistir aos `amassos` na novela das seis), compreender o impacto que o professor Kinsey provocou com seus estudos – principalmente se considerarmos sua abordagem absolutamente científica e objetiva, na qual `erotismo` era apenas um item de pesquisa. Encarando as relações sexuais entre adultos com total naturalidade e sem preconceito algum, Kinsey fez o que qualquer cientista que se preze deve fazer ao atacar um assunto: coletou dados, fez milhares de entrevistas, estabeleceu padrões, catalogou comportamentos e traçou conclusões a partir daí – e foi publicamente execrado por isto.

Escrito e dirigido por Bill Condon, Kinsey – Vamos Falar de Sexo relata justamente as motivações do personagem-título para mergulhar em um projeto que, a princípio, parecia fugir completamente de seu ramo de pesquisa. Casado com uma mulher de espírito igualmente moderno e mentalidade inquisitiva, o professor é uma figura fascinante não apenas pela maneira metódica com que investiga o sexo, mas também pelo relacionamento franco e aberto que mantém com a esposa e as filhas – e é ótimo constatar que Condon busca lidar com o tema e o personagem de forma adulta, sem concessões. O resultado é que a própria classificação recebida pelo filme nos Estados Unidos (`proibido para menores de 17 anos`) serve como exemplo dos valores distorcidos de um código de censura que se apavora com as imagens de pênis e vaginas, mas não pensa duas vezes antes de autorizar uma produção violenta e amoral como Paparazzi a ser vista por jovens de 13 anos de idade.

Ora, o desejo sexual não é uma característica atípica, um detalhe inconveniente do comportamento humano que deve ser reprimido ou ignorado; é, ao contrário, parte fundamental do modo como nos relacionamos com as demais pessoas e de como vivemos. Afinal, todos queremos encontrar alguém com quem dividir nossas vidas (algo que inclui o sexo, obviamente) e, na maior parte dos casos, conceber aqueles que darão continuidade ao que construímos. É este instinto que permite que nossa espécie sobreviva; condená-lo como algo `imoral` ou `vergonhoso` é desejar a extinção da humanidade. Para Kinsey, esta era uma questão de pura lógica e que rejeitava, portanto, julgamentos morais.

Por outro lado, esta abordagem estritamente racional de algo que envolve sentimentos era, também, o grande ponto fraco do cientista – e o filme ganha pontos adicionais ao retratar este fato. Vivido com talento por Liam Neeson, que não ignora as contradições do personagem, Kinsey parece ser incapaz de compreender que o envolvimento sexual implica, grande parte das vezes, numa ligação sentimental que envolve o desejo de ser `único` para o parceiro. Quando Claire (um desempenho sensível de Laura Linney) explica para o marido que não dorme com outros homens porque o `ama e não quer magoá-lo`, o professor, sempre lógico, pergunta: `E se eu não ficasse magoado?`. A resposta da companheira é simples e perfeita: `Então eu ficaria.`. Neste sentido, ele falha em perceber que as `amarras` sociais que condenam o adultério, por exemplo, servem, em nível individual, para impedir que as pessoas se magoem.

Discutindo todas estas questões com maturidade, Kinsey – Vamos Falar de Sexo é um exemplo raro na Hollywood contemporânea, já que utiliza sua história para propor debates inteligentes e relevantes. Pena que, em alguns momentos, se entregue ao formulaico e procure, por exemplo, criar momentos de emoção forçada, sem perceber que não precisa disso para ilustrar a importância do trabalho do protagonista. Além disso, por que Condon introduz um conflito entre Kinsey e seu filho (algo que parece estabelecer uma rima temática com os problemas entre o próprio Kinsey e seu pai), se não levará a questão adiante?

De todo modo, o filme demonstra compreender as razões por trás do apelo e da longevidade do trabalho do personagem-título: no fundo, todos queremos saber se o que desejamos (e fazemos) é `normal`, `aceitável`. Queremos a garantia de que não estamos sós em nossos fetiches e fantasias, que não somos `aberrações`. A cura para esta ansiedade, pregam filme e personagem, é discutir o assunto de forma franca e sem restrições; o sexo só é embaraçoso se for tratado desta maneira.

É trágico, portanto, constatar que esta é uma postura ainda longe de ser atingida pela maior parte das pessoas. A maior prova: mais de meio século depois da publicação do trabalho de Kinsey, grupos religiosos protestaram até mesmo contra o lançamento deste filme sobre sua vida. Pergunta: onde eles estavam quando Bush decidiu massacrar o povo iraquiano? Ah, esqueci: genocídio, sim; orgasmo, não.

Somos mesmo uma espécie evoluída.
``

27 de Abril de 2005

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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