Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
12/02/2004 | 13/07/2003 | 5 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
107 minuto(s) |
Dirigido por Andrew Jarecki. Com: Arnold, Elaine, David, Seth, Jesse e Howard Friedman.
`Eu tenho boas memórias de minha infância`, diz David Friedman nos momentos iniciais deste documentário sobre sua família. No entanto, ele gagueja tanto ao fazer esta afirmação que se torna difícil acreditar em suas palavras. Somente duas horas depois, quando a projeção chega ao fim, é que o espectador consegue entender o que teria levado David a ficar tão nervoso ao anunciar suas boas lembranças: quaisquer traços de felicidade que ele pudesse guardar na memória certamente foram abalados pelos terríveis acontecimentos que marcaram sua adolescência.
Em 1987, o pai do rapaz, Arnold Friedman, foi acusado de pedofilia depois que a polícia interceptou uma revista contendo pornografia infantil que lhe fôra enviada pelo correio – e como Arnold dava aulas particulares de computação para crianças no porão de sua casa, a desconfiança dos policiais aumentou ainda mais, culminando na prisão do professor sob a acusação de ter molestado diversos alunos. Para piorar, um de seus filhos, Jesse, foi indiciado como cúmplice e levado a julgamento, o que obviamente mergulhou os Friedmans em uma profunda crise familiar. Não é à toa que, em determinados momentos da projeção, David simplesmente se nega a discutir determinados assuntos – atitude compartilhada por sua mãe, com quem ele não conversa há anos.
Elaine Friedman, diga-se de passagem, torna-se uma das figuras centrais deste doloroso documentário: `Eu tinha uma boa família`, ela diz, em certo momento – e o diretor Andrew Jarecki comprova a antiga harmonia daquelas pessoas ao exibir imagens dos vídeos caseiros realizados por eles, e que mostram Arnold e Elaine, ainda jovens, brincando alegremente com seus três filhos. Aliás, o impacto provocado pelo longa torna-se maior graças justamente às cenas resgatadas do arquivo dos Friedmans, já que David filmou praticamente todas as discussões ocorridas durante o desgastante processo judicial, numa espécie de registro mórbido da desintegração de sua família – e é realmente triste testemunhar um jantar em que todos trocam pesadas acusações enquanto ainda temos na memória as cenas em que eles apareciam brincando na praia. Neste aspecto, Na Captura dos Friedmans é um implacável estudo sobre o comportamento e a reação de indivíduos que atravessam complexas crises pessoais e os efeitos destas alterações sobre a dinâmica familiar: `Por que eu deveria sentir carinho por você?`, Elaine pergunta a um de seus filhos – e, por mais cruel que a indagação seja, não podemos deixar de compreender os motivos que a levam a ser feita.
Mas este belo documentário não se restringe apenas ao impacto das acusações sobre seus protagonistas, já que aproveita para analisar as graves falhas do inquérito policial que acabou destruindo uma família: inicialmente, Jarecki exibe entrevistas com os principais oficiais envolvidos na investigação, apresentando seus pontos-de-vista sem praticamente qualquer interferência. Porém, as perguntas logo começam a surgir: como os alunos poderiam ter sido estuprados na sala de aula sem que seus colegas percebessem? E por que nenhuma criança relatou incidente algum para seus pais? E será que os adultos não perceberiam que algo de errado acabara de ocorrer no momento em que buscassem seus filhos na casa dos Friedmans? Por incrível que pareça, o processo que levou Arnold e Jesse aos tribunais não se preocupou em responder dúvidas tão cruciais; não chegou sequer a apresentar evidências físicas dos crimes, limitando-se aos depoimentos das crianças.
Aliás, seriam tais depoimentos confiáveis? Mais uma vez, Jarecki se encarrega de apresentar, para o espectador, indícios de que as investigações talvez tenham sido contaminadas pelo despreparo dos policiais envolvidos, que poderiam, voluntária ou involuntariamente, ter influenciado suas jovens testemunhas. É possível que até mesmo o excesso de zelo tenha atrapalhado os trabalhos, o que, numa situação como esta, representa algo tão grave quanto a falta de dedicação – afinal de contas, pedofilia é o típico crime capaz de despertar uma verdadeira onda de histeria em uma comunidade.
Ainda assim, Na Captura dos Friedmans jamais comete o erro de assumir a defesa de Arnold e Jesse – especialmente do primeiro, já que Arnold, no mínimo, era consumidor de pornografia infantil (o que não quer dizer, necessariamente, que ele tenha violentado seus alunos). O que o filme faz é questionar, com imparcialidade e inteligência, as circunstâncias nada justas ou transparentes que cercaram a prisão dos dois homens. Por que, por exemplo, câmeras de televisão foram admitidas pela primeira vez no interior do tribunal justamente durante este processo? Como esperar que um júri seja imparcial se está sendo bombardeado por notícias sensacionalistas sobre o incidente que deverá julgar? Como evitar que a Imprensa, cujo dever é informar objetivamente, exerça um poder pernicioso sobre a sociedade em função da sede de ambas por manchetes bombásticas?
Na Captura dos Friedmans é, em suma, um documentário que desperta muitas perguntas pertinentes que são deixadas sem respostas – não por falha de Jarecki, mas em razão da complexidade do assunto, que não conta com soluções fáceis. Ao longo da projeção, por exemplo, fica patente que os Friedmans não formam uma família que poderíamos chamar de `normal`: há uma estranha dinâmica envolvendo os irmãos, que parecem sempre impacientes com a mãe, Elaine. Por outro lado, também é óbvio que esta enfrenta problemas para expressar suas emoções e pensamentos, o que cria uma distância entre todos. Porém, o fato desta ser uma família `desequilibrada` é o bastante para que tiremos conclusões sobre os atos de Arnold? E um núcleo familiar mais estável teria conseguido sobreviver melhor a uma crise como aquela? Elaine pode ser uma mulher bastante problemática (e é), mas sua auto-defesa (`Eu não fui embora`) é válida o bastante para que reconsideremos nossos julgamentos iniciais – afinal, o simples fato de permanecer em meio ao furacão já é um mérito considerável. Ou não?
Seja como for, Andrew Jarecki realizou um filme forte e comovente que prende o espectador e o tortura emocionalmente com a trajetória de uma família que se destrói em frente aos nossos olhos. A história dos Friedmans é, sem dúvida alguma, absurdamente trágica e – o que é ainda mais grave – representa um grave sintoma de uma sociedade em que a mídia ganhou poderes de polícia, juiz e executor.
25 de Fevereiro de 2004
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