Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
28/10/2005 | 06/05/2005 | 5 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
112 minuto(s) |
Dirigido por Paul Haggis. Com: Don Cheadle, Matt Dillon, Ryan Phillippe, Terrence Howard, Sandra Bullock, Jennifer Esposito, Loretta Devine, Keith David, Art Chudabala, Tony Danza, Karina Arroyave, William Fichtner, Brendan Fraser, Ken Garito, Nona Gaye, Ludacris, Thandie Newton, Martin Norseman, Yomi Perry, Michael Pena, Bahar Soomekh, Larenz Tate, Beverly Todd, Shaun Toub, Ashlyn Sanchez, Marina Sirtis.
Deve haver alguma coisa em Los Angeles que transforma a cidade em um microcosmos capaz de despertar, em grandes cineastas, o desejo de convertê-la num símbolo de tudo que diz respeito à condição humana. Além do belíssimo L.A. Story, escrito por Steve Martin em 1991, a cidade já serviu de palco para que grandes cineastas fizessem comentários sociais e analisassem de forma sensível nossa trajetória atrapalhada sobre este pequeno planeta: Robert Altman (Short Curts), Lawrence Kasdan (Grand Canyon – Ansiedade de uma Geraçãoe) e Paul Thomas Anderson (Magnólia) são os exemplos que vêm imediatamente à mente. Unindo-se a este seleto grupo, o roteirista Paul Haggis (Menina de Ouro) realiza um filme absolutamente espetacular que imediatamente o estabelece como uma das grandes revelações do ano (se não a maior), já que, até então, havia dirigido apenas um longa sem expressão há mais de dez anos (Hoje é Dia de Rock).
Iniciando sua narrativa com um acidente de trânsito (que formará uma rima elegante com seu desfecho), Haggis gradualmente nos apresenta a uma imensa galeria de personagens que representam diversos tipos compreendidos pela sociedade: em certo instante, por exemplo, vemos a neurótica mulher interpretada por Sandra Bullock insinuar que o chaveiro que se encontra em sua casa pode ser membro de uma gangue e percebemos que o sujeito se sentiu (justificadamente) insultado. No entanto, o filme não se limita a vê-lo de forma superficial – e, quando ele vai embora, o acompanhamos até sua residência e conhecemos sua família. Assim, ao longo dos 113 minutos de projeção, acabamos conhecendo mais de duas dezenas de personagens marcantes que, graças ao talento de seus intérpretes, à direção (e ao roteiro) de Haggis e à montagem de Hughes Winborne, tornam-se igualmente importantes para o espectador – tanto que, ao listar os integrantes do elenco no alto deste artigo, não consegui me forçar a deixar ninguém para trás, escrevendo nada menos do que 26 nomes.
Aliás, a primeira característica que chama a atenção no universo concebido por Haggis é a diversidade étnica e social dos personagens retratados – um detalhe fundamental para que o cineasta possa traçar um complexo painel sobre a intolerância e o preconceito na sociedade norte-americana, que enfrenta uma verdadeira `guerra fria` civil na qual todos lutam contra todos: os brancos temem os negros, que desprezam os orientais, que ofendem os persas, que não gostam dos latinos, que detestam os brancos, que também não gostam dos árabes, e assim por diante. Quando um policial branco mata um policial negro em uma troca de tiros sem testemunhas, o promotor se vê tentado a declarar que o segundo foi uma vítima inocente a fim de não ser acusado de preconceito pela imprensa – mesmo que haja evidências de que o policial morto era corrupto. O que está errado neste quadro? Simples: as palavras `branco` e `negro` não deveriam fazer a menor diferença ao analisar a situação.
Infelizmente, preconceitos de todas as formas fazem parte da vida em sociedade; tememos aqueles que são `diferentes`, ignorando que, na realidade, somos todos iguais e que estas `diferenças` são características superficiais, como a concentração de melanina na pele ou a crença em um Deus levemente diferente. E o que é pior: como somos condicionados desde a infância a reconhecer estas diferenças (mesmo que com o objetivo salutar de ignorá-las), lutar contra este condicionamento torna-se uma batalha constante e complexa: em um momento, podemos fazer um discurso apaixonado contra os estereótipos e o racismo e, no minuto seguinte, atravessarmos a rua para evitar um rapaz negro com aparência `suspeita`. Mesmo uma vítima constante do preconceito pode manifestar suas próprias aversões sem perceber a triste ironia que isto representa: em Crash, por exemplo, a articulada Shaniqua Johnson (Devine), que é negra, fica indignada com o tratamento que recebe do policial Ryan, vivido por Matt Dillon, mas a primeira coisa que diz ao confrontar um oriental que bateu em seu carro é: `Não se dirija a mim a não ser que saiba falar ‘americano’!`. Neste sentido, ao analisar os diferentes tipos de intolerância, Crash torna-se tão complexo quanto o excepcional A Luz é Para Todos, dirigido por Elia Kazan em 1947 e que é, até hoje, um dos melhores longas a abordar o assunto.
Porém, o filme de Paul Haggis não discute apenas o preconceito, mas também uma de suas causas (e, simultaneamente, conseqüências): a violência absurda que ameaça a todos nos dias de hoje. Em certo momento, a personagem de Sandra Bullock desabafa: `Eu sinto raiva o tempo todo!` – e é claro que ela se sente assim: como podemos manter a serenidade vivendo em uma sociedade na qual nossas crianças, em vez de temerem o `bicho-papão` ou o `boi da cara preta`, sentem medo de balas perdidas e estupradores? Aliás, neste aspecto o filme talvez não seja visto com muita simpatia por quem defende a comercialização de armas de fogo no país, já que, sem pregações (o roteiro evita esta postura do início ao fim), ilustra o potencial para a tragédia representado por um revólver: o filme conta com duas seqüências particularmente tensas nas quais um ou mais personagens enfrentam o cano de uma arma. De forma simples, Crash resume a questão ao seu básico: não se trata de apoiar ou não a legalização das armas; a mera existência destes objetos é reprovável, já que são criadas com o único objetivo de ferir ou tirar a vida de alguém. (Alguém já ouviu falar de uma Magnum decorativa?)
Na realidade, arrisco-me a dizer que Crash – No Limite é mais do que um estudo sobre preconceito e violência; é, acima de tudo, uma visão sensível sobre a natureza humana. Graças à série de histórias que se entrecruzam, podemos perceber como alguém que num minuto é visto como `vilão` pode surgir, no instante seguinte, como uma pessoa digna de respeito e admiração. Neste sentido, o policial de Matt Dillon é emblemático: depois de sujeitar a personagem de Thandie Newton a uma humilhação absurda, é justamente ele quem demonstra um desprendimento maravilhoso ao procurar salvá-la – e o olhar de incompreensão que ela lhe lança é absolutamente perfeito: `Como este homem pode ser capaz de atitudes tão contraditórias?`, ela parece pensar. E a resposta é simples e complexa ao mesmo tempo: ele é humano e, como tal, contraditório por excelência. (Aliás, há um outro olhar no filme – desta vez, de um morto – que impressiona por sua riqueza de conteúdo, já que parece encarar com reprovação absoluta a face da pessoa ao seu lado.)
A verdade é que, como alguém diz em Crash, jamais saberemos de fato quem somos. Quantas e quantas vezes nos surpreendemos com nossas próprias atitudes em determinadas circunstâncias? Isso não nos transforma em vilões ou mocinhos, apenas em indivíduos que têm muito pouco tempo para compreender o que significa estar vivo e como podem ser afetados por todos que os cercam. E se não conseguimos enxergar com sensibilidade nem quem está ao nosso lado, como podemos esperar compreender o `grande esquema` das coisas?
Como tragédias como o terremoto no Paquistão, o tsunami na Ásia e o furacão em New Orleans demonstram muito bem, somos criaturas frágeis e impotentes, apesar de nossa mania de grandeza. É isso que temos que compreender, no final das contas. E lembrar de que, acima de tudo, só podemos contar uns com os outros.
20 de Outubro de 2005