Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
02/05/2003 | 23/03/2004 | 5 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
102 minuto(s) |
Dirigido por João Moreira Salles.
Em certo momento do novo documentário de João Moreira Salles, o pianista Nelson Freire distribui autógrafos enquanto é atentamente observado por um homem que se encontra no meio da multidão. Hipnotizado pelo músico, o sujeito parece tentar compreender como alguém tão `comum` pode possuir tamanho talento – um sentimento que, confesso, passei a compartilhar ao fim da projeção. Aliás, minha admiração por Freire tornou-se tão intensa que, ao sentar-me para escrever esta análise, senti o peso de uma enorme responsabilidade, como se, ao tentar retratar sua arte em palavras, eu estivesse cometendo um verdadeiro sacrilégio. Em vez de redigir um texto, meu impulso inicial é simplesmente o de aplaudir o pianista.
Nascido em Boa Esperança (MG), Nelson Freire teve uma infância solitária e comprometida por sua saúde frágil – algo que o levou a concentrar, desde cedo, todas as atenções na música. Transformando-se em um menino-prodígio, Freire mudou-se com a família para o Rio de Janeiro com o objetivo de desenvolver ao máximo seu potencial, como seu próprio pai relata em uma carta incrivelmente articulada e afetuosa que, lida pelo documentarista Eduardo Coutinho durante o filme, explicita os sacrifícios que se tornaram necessários para que o garoto pudesse crescer como músico. Consagrado como um dos pianistas mais talentosos da atualidade por críticos em todo o mundo, Nelson Freire revela-se um indivíduo incrivelmente simples e amável, expondo, entre outras coisas, seu amor pelo Cinema dos anos 40 e seu cotidiano tranqüilo, dividido apenas com a cadela Danuza, que adora ouvir seu dono tocar.
Sem utilizar depoimentos de outras pessoas sobre o pianista (algo não muito comum em cinebiografias como esta), João Moreira Salles concentra-se apenas no próprio Nelson, que, com sua voz suave e gentil, entrega sua timidez ao tentar articular seus sentimentos sobre a solidão em que vive (algo que Salles ilustra com grande sensibilidade ao mostrar o músico no palco, isolado do restante do mundo por um círculo de luz). Conhecido por sua relutância em conceder entrevistas, Freire condena o culto às celebridades: `A música não é para isso; não é uma competição. É uma distorção ser colocado acima da música`. (Apesar disso, em um dos momentos mais espantosos do documentário ele aparece sendo entrevistado por um jornalista francês que, sem ocultar seu preconceito, obriga-o a utilizar um `sotaque brasileiro` ao dizer o nome da cidade em que se encontram – o que, de certa forma, justifica sua resistência em atender à imprensa.)
Mesmo admirado em todo o mundo (algo comprovado por uma montagem em que o vemos sendo parabenizado em várias línguas), Nelson jamais abandona o rigor consigo mesmo, exigindo o máximo de si e de seu instrumento. Ao preparar-se para um concerto beneficente, por exemplo, ele detecta problemas sutis no piano do teatro (tão sutis que meus ouvidos leigos não conseguiram captar diferença alguma) e, num depoimento divertidíssimo, explica: `Aquele piano não gosta de mim. É um Steinway novo, mas não gosta de mim. Não sei por quê; não fiz nada a ele`. Para tornar o desentendimento entre o artista e o instrumento ainda mais claro (e engraçado), João Moreira Salles edita a cena como se Nelson e o piano estivessem encarando um ao outro, como num desafio – e o resultado é fantástico.
Sempre gentil, o músico não deixa de reverenciar a memória da inesquecível Guiomar Novaes (sem encontrar palavras dignas da pianista, Freire opta por homenageá-la de uma forma simples, mas eficaz: liga um CD com uma apresentação da artista e, emocionado com a beleza do que ouve, não contém suas lágrimas). Da mesma forma, ele permite que compartilhemos um pouco de sua fascinante amizade com a igualmente talentosa Martha Argerich, sem que, para isso, tenha que revelar a misteriosa natureza de seu envolvimento com esta (algo que Salles respeita, deixando nossa curiosidade sem resposta. Aliás, confesso que gostaria de vê-lo dirigir uma `continuação` intitulada Martha Argerich).
Porém, as muitas virtudes de Nelson Freire não param por aí: sem deixar-se cegar pelo próprio talento, o pianista demonstra incrível humildade ao revelar, por exemplo, sua admiração por Erroll Garner (`Nunca vi alguém tocar com tanto prazer`) e sua ansiedade ao executar um determinado trecho de uma obra composta por Brahms (`Todo mundo sabe que é difícil e fica esperando`). Nestes momentos, ele ainda enriquece o documentário com pequenas anedotas sobre a profissão, como ao narrar o caso do pianista que, depois de tocar aquele complicado trecho, ficou tão aliviado com seu sucesso que se esqueceu do restante da música.
Apesar de tudo, Nelson Freire não é um documentário voltado apenas para os fãs de música clássica. Didático e envolvente, este maravilhoso filme de João Moreira Salles funciona como um verdadeiro estudo de personagem, levando o espectador a compreender um pouco melhor a alma de um homem absurdamente talentoso, mas igualmente modesto.
18 de Maio de 2003