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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
24/01/2003 01/01/1970 3 / 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
114 minuto(s)

Femme Fatale
Femme Fatale

Dirigido por Brian De Palma. Com: Rebecca Romijn-Stamos, Antonio Banderas, Peter Coyote, Eriq Ebouaney, Edouard Montoute, Rie Rasmussen, Gregg Henry e Thierry Frémont.

Antes de começar a falar especificamente sobre Femme Fatale, novo trabalho do cineasta Brian De Palma, peço sua permissão para narrar um caso que, creio eu, servirá para explicar a real natureza deste filme: há algumas semanas, minha irmã, formanda em Belas Artes, veio ao meu apartamento para pintar o quarto de meu filho que está prestes a nascer (nós decidimos decorar as paredes do quarto com vários personagens infantis do Cinema, como Dumbo, Tambor, Pinóquio, etc, e minha irmã se responsabilizou pela tarefa). Quando ela concluiu o trabalho, me aproximei dela e comentei: `Ficou sensacional. Você é realmente uma artista`. Para minha surpresa, no entanto, ela respondeu: `Isso não é arte. Fiz uma pintura puramente técnica`. Intrigado, olhei para os personagens na parede e – confesso – fui incapaz de perceber a diferença.

Porém, quando Femme Fatale chegou ao fim, esta conversa voltou à minha mente e, somente neste instante, pude compreender o que minha irmã havia dito. Pois a verdade é que, neste filme, De Palma faz exatamente isso: um trabalho técnico, sem paixão ou alma. Do ponto de vista estético e estrutural, esta é uma obra fascinante. Infelizmente, no entanto, seu centro não possui a intensidade que o cineasta conferiu a produções como Os Intocáveis, Pecados de Guerra e O Pagamento Final. É como se, desta vez, ele estivesse interessado apenas em `brincar` com suas técnicas – e, assim, ao longo da projeção somos brindados com movimentações de câmera arrojadas; telas divididas; fusões criativas (como no momento em que um close no nariz da protagonista cede lugar ao reflexo da chuva escorrendo por uma janela; seqüências em câmera lenta; e assim por diante. Mestre incontestável no que se refere à criação de tomadas fascinantes, De Palma se entrega a um exercício de estilo incrivelmente auto-indulgente.

É uma pena que, simultaneamente, o cineasta não tenha se preocupado em criar uma história mais elaborada. Escrito pelo próprio diretor, o roteiro se concentra na bela Laure (Romijn-Stamos), uma mulher fria que, depois de roubar 10 milhões de dólares em diamantes, engana os próprios comparsas e foge com as jóias. Perseguida pelos bandidos, ela acaba sendo confundida com uma mulher que acabou de perder a família em um acidente, e decide assumir esta nova identidade. A trama ainda inclui a participação de Nicolas (Banderas), um fotógrafo que se vê comprometido por uma acusação de seqüestro depois que se envolve com a garota.

Um dos grandes problemas de Femme Fatale reside no fato de que a protagonista, ao assumir com radicalismo a condição descrita no título, revela-se uma mulher completamente amoral e desprezível, o que nos impede de torcer por ela. Fascinada pelo poder que exerce sobre os homens (algo que se torna evidente em uma bela tomada em que vemos as sombras de dois sujeitos brigando), Laure é a encarnação unidimensional das `mulheres fatais` dos filmes noir – e não é à toa que a primeira tomada desta produção mostra o reflexo da garota em uma televisão que exibe uma cena de Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue (1944), clássico do gênero. Além disso, De Palma ainda faz suas costumeiras homenagem a Hitchcock ao incluir, em seu roteiro, temas e elementos constantes na filmografia do diretor, como personagens com identidades trocadas, seqüências situadas em banheiros e, é claro, uma loira misteriosa, fria e calculista.

Aliás, já que estamos falando em Alfred Hitchcock, poderíamos concluir que toda a trama de Femme Fatale é um McGuffin: uma mera desculpa para que De Palma possa criar seqüências tensas e elaboradas. (Observe, por exemplo, que a passagem de avião encontrada por Laure pertence a uma empresa chamada `Quinta` – o mesmo nome da companhia responsável pela produção do filme!) A pergunta é: Brian De Palma está sendo justo com a platéia ao mergulhá-la em um exercício sem, antes, explicar suas intenções? Porém, esta indagação acaba perdendo o sentido no terceiro ato da trama, quando o espectador é atingido por uma reviravolta absolutamente inesperada – e irritante.

E, neste instante, sou obrigado a falar um pouco sobre este `golpe de misericórdia` desferido pelo cineasta – portanto, caso não queira descobrir detalhes sobre o roteiro, pule este parágrafo e o seguinte, indo direto ao fim desta análise. Pois a verdade é que, apesar de frustrante, a tal revelação não é de todo traiçoeira: De Palma, cruel como poucos, se diverte ao deixar pequenas pistas sobre o que pretende fazer. Muito bem: se você continua a ler este parágrafo, já sabe – ou não se importa em saber – que todo o segundo ato de Femme Fatale nada mais é do que um sonho da protagonista, que adormece na banheira da casa de sua sósia. Uma evidência disto pode ser encontrada, por exemplo, no fato de que todos os relógios que aparecem ao longo desta seção do filme marcam o mesmo horário: 3:35 da tarde – o mesmo horário em que a garota adormeceu. Além disso, observe que o sangue na camisa de um dos bandidos continua vermelho depois de sete anos; e repare, também, que o aquário existente na sala de Lily (a sósia) está vazando água, como se o som da banheira transbordando tivesse entrado no sonho de Laure.

E mais: durante os minutos iniciais da projeção, a moça passa por dois homens (Peter Coyote e Gregg Henry) que, mais tarde, irão aparecer em seu sonho como o homem de negócios no avião e o segurança da embaixada (brincadeira que David Lynch já havia feito em Cidade dos Sonhos). Como se não bastasse, momentos antes de entrar na banheira, Laure passa por uma televisão que está anunciando uma matéria sobre a possibilidade de prevermos o futuro – algo que ela irá fazer antes que o filme chegue ao fim.

É claro que alguns fãs mais radicais de Brian De Palma podem alegar que Femme Fatale discute temas como a `imponderabilidade do destino`, a `natureza do inconsciente humano`, e por aí afora. Mas a verdade é que, desta vez, o cineasta parecia interessado apenas em alongar seus `músculos do talento`. Como obra de arte, portanto, este projeto falha grosseiramente (e vai despertar a revolta de muitos espectadores). Já como exercício cinematográfico, merece um pouco mais de atenção.
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21 de Janeiro de 2003

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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