Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
18/08/2000 | 02/03/2001 | 5 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
104 minuto(s) |
Dirigido por Andrucha Waddington. Com: Regina Casé, Lima Duarte, Stênio Garcia, Luiz Carlos Vasconcelos, Nilda Spencer e Jocemar Damásio.
Poucas figuras são tão poéticas quanto uma árvore seca: é impossível não admirar a força de seus galhos, que se mantém firmes mesmo sob o castigo de um interminável verão, e sua incrível capacidade de regeneração, já que basta um pouco de água para trazer de volta a vida que jazia escondida sob sua casca ressequida. A beleza desta analogia me veio à cabeça enquanto eu assistia a Eu, Tu, Eles, já que descreve com precisão o arco dramático vivido pela nordestina Darlene (Casé), uma mulher sofrida que encontra, em uma gota (ou mais) de companheirismo e amor, novo fôlego para sua pobre existência.
E quando digo `pobre`, não estou me referindo apenas ao vazio de sua vida, mas também utilizo a palavra em seu sentido literal, já que o filme de Andrucha Waddington se passa em uma realidade de extrema penúria (em certo momento, ao ver um antigo vizinho construindo uma humilde casa de pau-a-pique, Darlene comenta com admiração: `Enricou, hein?`). Como seria de se esperar, a miséria dos personagens é ainda mais realçada pela terrível seca que abala o interior nordestino (ao longo da trama, presenciamos a transformação de um açude em um simples laguinho).
É neste mundo tragicamente real que vive Darlene, mãe solteira de um garoto de três anos (ingênua, ela chegou a esperar o pai da criança em frente à Igreja). Certo dia, a mulher recebe a visita do vizinho Osias (Duarte), bem mais velho do que ela. Fruto de uma sociedade machista, ele vai direto ao ponto e oferece sua casa em troca da mão de Darlene (`De minha parte o acordo tá feito`, ele diz). Sem maiores perspectivas (ou nenhuma), ela aceita a proposta sem delírios de amor: para ela, não existe o sonho de um `príncipe encantado`, mas sim a necessidade de sobreviver da maneira menos desesperadora possível. O que vemos em seguida é o triste cotidiano de uma típica `sobrevivente da seca`: ela trabalha o dia inteiro como bóia-fria para ganhar míseros 3 ou 4 reais - que são imediatamente entregues ao marido, que passa todo o seu tempo deitado em uma rede, fiscalizando sua criação de cabras.
No entanto, caso você esteja pensando que Eu, Tu, Eles é um sofrido drama, deixe-me desfazer esta impressão: o filme tem seus momentos dramáticos, sim - mas também possui uma grande carga cômica, levando o espectador às gargalhadas em vários momentos memoráveis. Na verdade, a história ganha um novo alento com a chegada de Zezinho (Garcia), o matuto primo de Osias. Sensível e bondoso, ele logo ganha a atenção de Darlene, sempre tão desprezada: para uma mulher como ela, Zezinho é o que há de mais próximo da figura do `príncipe`. Tempos depois, Darlene dá à luz a uma criança parecidíssima com Zezinho. Osias, por sua vez, finge ignorar as evidências (ainda mais graves se considerarmos que o primeiro filho do casal também é claramente fruto de outra relação extraconjugal).
Mas por que Osias, teoricamente tão `machista`, permite que Darlene abrigue o amante e dois filhos bastardos sob seu teto? O filme nunca oferece uma explicação clara (o que é ótimo), mas não é difícil imaginar suas motivações. Antes de mais nada, o homem é extremamente interesseiro - e não podemos ignorar que Darlene traz um dinheiro extra com seu trabalho, enquanto Zezinho cozinha e arruma a casa sem reclamar. Além do mais, um conflito familiar arruinaria sua tranqüila existência, que seria ainda mais prejudicada caso ele tivesse que assumir sua falta de autoridade sobre a esposa. O mesmo raciocínio se aplica à chegada do terceiro `marido` de Darlene (desta vez, o `suborno` é a comida comprada pelo rapaz).
Assim, de uma forma extremamente curiosa, os quatro estabelecem um interessante equilíbrio: Osias `oferece` a casa e, em troca, ganha empregado, comida e sustento. Já Zezinho investe seu amor em Darlene com reverência e curiosidade quase adolescentes, enquanto esta busca em cada um de seus `maridos` a satisfação de uma necessidade: autoridade (Osias), amizade (Zezinho) e sexo (Ciro).
Como se não bastasse a complexidade desta atípica dinâmica familiar, a roteirista Elena Soarez ainda nos brinda com diálogos inteligentes e repletos de humor. E se algumas risadas vêm da crueldade simples do povo, sempre ácido e certeiro em seus comentários (`Isso é da raça de Raquel: dá filho, não`), outras cenas memoráveis nascem da simples interação entre os personagens. Na verdade, não posso deixar de destacar as duas cenas em que Zezinho faz a barba de Osias: autênticas e divertidas, elas trazem os personagens em seus melhores momentos (e a frase `A casa é minha`, dita por Lima Duarte, quase se transforma em bordão do filme).
Além da bela fotografia de Breno Silveira e da soberba trilha sonora de Gilberto Gil, Eu, Tu, Eles ainda traz atuações realmente inesquecíveis de todo o elenco - em especial de Stênio Garcia, Lima Duarte e Regina Casé. É claro que todos se esquecem do sotaque nordestino em vários momentos, mas isso em nada compromete o resultado final. O fato é que estes personagens tornam-se tão vivos ao longo das quase duas horas de projeção que realmente passamos a nos importar com eles (sim, até mesmo com o rabugento Osias).
Mas eu não poderia concluir esta crítica sem mencionar a imagem mais evocativa do filme (e que me levou a pensar na analogia citada no primeiro parágrafo): estou falando do momento em que Lima Duarte, depois de um confronto com a realidade, se apóia em um dos galhos da magnífica (apesar de seca) árvore existente em seu quintal. Não sei se o simbolismo foi acrescentado por Andrucha Waddington de forma intencional ou não, mas o fato é que a simples figura de Osias encostado no galho representa, de maneira gráfica, os sentimentos inspirados pelo filme: não consigo deixar de imaginar Darlene como a árvore ressequida por uma vida de tristezas (mas sempre pronta a regenerar-se). Neste quadro, seus galhos são seus filhos e maridos - um dos quais, Osias, até procura se afastar, mas em vão: sem o tronco, o galho morreria.
5 de Setembro de 2000