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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
03/02/2006 01/01/1970 2 / 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
145 minuto(s)

Memórias de uma Gueixa
Memoirs of a Geisha

Dirigido por Rob Marshall. Com: Ziyi Zhang, Gong Li, Michelle Yeoh, Tsai Chin, Kaori Momoi, Suzuka Ohgo, Ken Watanabe, Youki Kudoh, Kôji Toyoda, Cary-Hiroyuki Tagawa, Randall Kuk Kim, Ted Levine e a voz de Shizuko Hoshi.

Para um filme que busca desesperadamente retratar o poder exercido sobre os homens por suas personagens femininas através do sexo (ou da promessa de), Memórias de uma Gueixa acaba se revelando um exercício deprimente de chauvinismo, parecendo ignorar a triste realidade de suas protagonistas, que jamais deixam de ser tratadas como meros objetos - mesmo quando as intenções de seus amantes parecem ser relativamente nobres. Além disso, o esforço do roteiro de Robin Swicord (inspirado em livro de Arthur Golden) no sentido de diferenciar as gueixas das prostitutas comuns cria um vácuo narrativo na história, já que as experiências daquelas mulheres assumem uma ingenuidade incompatível com o restante da trama. Ao descrever para Sayuri (Zhang) como será sua primeira experiência sexual após sua virgindade ser leiloada, a experiente gueixa Mameha (Yeoh) adota uma metáfora ridícula sobre uma `enguia entrando numa caverna`, como se o espectador pudesse acreditar que, àquela altura, Sayuri ainda não soubesse do que se trata uma relação sexual.

Acompanhando a vida de Sayuri desde a infância, quando a menina foi vendida para a dona de uma okiya (casa de gueixas), até seu amadurecimento como a mulher mais desejada de Kyoto, Memórias de uma Gueixa tenta, desde o começo, estabelecer como as misteriosas profissionais do título são muito mais `dignas` do que as prostitutas baratas que se vendem por comida nos bairros miseráveis da cidade. Porém, ao condenar as últimas e enobrecer as primeiras, o filme escancara a própria hipocrisia: sim, as gueixas são mais refinadas e elegantes, mas, no fim das contas, estamos discutindo apenas uma diferença de preços, não de dignidade: quando alguém resolve contratar uma garota de programa que cobra 500 dólares por hora em vez de transar com uma prostituta de rua que exigiria apenas 50 reais, o objetivo é ter a `satisfação` de dominar uma mulher supostamente mais disputada, mais exigente, o que não muda o fato de que ela está, como suas colegas da calçada, apenas vendendo o direito de utilização de seus orifícios. Uma garrafa de água filtrada pode custar muito menos do que uma de Evian, mas mata a sede do mesmo jeito.

Infelizmente, não é apenas o falso moralismo de Memórias de uma Gueixa que compromete o filme; como centro de sua narrativa, o longa traz uma historinha de amor boba e artificial carregada de diálogos cafonas e melodramáticos: ao guardar um retrato do amado `Presidente` (Watanabe) em uma caixa, Sayuri proclama: `Ao lado de sua foto, eu trancaria meu coração e o guardaria para ele`. Melhor do que isso, só um verso de pagode. Além disso, o próprio diretor Rob Marshall adota uma abordagem de melodrama ao investir em cenas como aquela em que a protagonista, desencantada, resolve se livrar de um lenço que carregara por vários anos: em vez de atear fogo ao pano ou de jogá-lo no lixo, Sayuri surge no alto de uma montanha localizada no meio do nada e o atira ao vento, levando o espectador a se perguntar quantos dias ela levou para chegar até ali com o simples objetivo de descartar um retalho de tecido. É uma linha novelesca e maniqueísta que não tem medo de apelar até mesmo para o velho clichê da `declaração de amor interrompida`: basta a mocinha se dirigir ao mocinho com as palavras `Eu queria lhe dizer que...` para alguém surgir em cena gritando `Sayuri!` no momento-chave. Faltou apenas o letreiro `A seguir, cenas do próximo capítulo`.

Mas nenhuma novela estaria completa sem a presença de uma vilã odiosa – e, aqui, o papel é assumido com gosto pela belíssima Gong Li: disposta a tudo para prejudicar Sayuri, Hatsumomo é má apenas por ser má. Não há justificativas para seus atos e ela é sumariamente descartada assim que cumpre seu objetivo na narrativa e o roteiro decide investir em outra subtrama (o que também é decepcionante, já que é lamentável que uma personagem importante como ela saia de cena de forma tão abrupta). Mesmo assim, Hatsumomo ainda tem tempo de soltar um `Eu hei de destruir você!` que faria Odete Roittman se roer de inveja.

Empalidecendo frente à intensidade de sua rival, a `mocinha` (hum... má escolha de palavra) torna-se ainda menos interessante em função de sua constante passividade: desde o início, Sayuri revela-se uma figura apática que é levada de um lado para o outro (física, emocional e psicologicamente) por praticamente todos os demais personagens. Ao se exilar em uma comunidade afastada a fim de fugir da guerra, ela se mostra incapaz até mesmo de buscar notícias sobre o que está acontecendo no mundo e de avaliar se já é seguro retornar para Kyoto - e a impressão que temos é a de que ela ficaria ali para sempre, mesmo contra sua vontade, caso alguém não surgisse para `resgatá-la`.

No entanto, apesar de todos os seus equívocos narrativos, Memórias de uma Gueixa tem, a seu favor, o brilhantismo técnico de uma equipe experiente de artistas, a começar pela belíssima trilha sonora do mestre John Williams, que busca inspiração em instrumentos e arranjos orientais ao compor a música que, por si só, consegue conferir certo peso dramático à trajetória de Sayuri (aliás, para constatar o talento fabuloso de Williams, basta comparar seu trabalho neste filme ao realizado também este ano em Munique, para o qual o músico criou composições baseadas em culturas e instrumentos completamente diversos). Da mesma forma, o montador Pietro Scalia cria transições elegantes (como a neve que se converte em fumaça) que conferem uma fluidez que o filme, de outra maneira, não possuiria - embora acabe sendo derrotado pela longa duração deste.

Enquanto isso, a fabulosa direção de arte vai além da simples recriação de época, investindo em cenários que expressam a realidade e os sentimentos dos personagens, como as estreitas vielas que mal permitem a passagem dos riquixás ou as colunas que, próximas umas das outras, acabam dando a impressão de formarem um longo corredor que sufoca a corrida da protagonista. Além disso, a fotografia enriquece ainda mais a beleza dos sets, atribuindo uma aura de mistério a estes, como no momento em que Sayuri sobe uma escadaria ladeada por paredes de bambu que ganham um brilho mágico em função da bela composição em contraluz de Dion Beebe.

É uma pena, portanto, que Rob Marshall desperdice o potencial dramático da história ao demonstrar não compreender o núcleo da narrativa: Memórias de uma Gueixa não deveria ser sobre os esforços de uma sedutora profissional para conquistar o amor idealizado de uma figura distante, mas sim sobre a trajetória de uma mulher que, vítima da miséria e de uma sociedade conservadora e machista, descobre uma maneira de contornar os obstáculos ao usar sua feminilidade para conquistar seu próprio espaço. Curiosamente, esta era uma das leituras permitidas pelo filme de estréia de Marshall, Chicago, mas que aqui cede lugar ao óbvio, ao clichê.

Como se não bastasse, Memórias de uma Gueixa ainda tenta se salvar através de uma daquelas revelações arbitrárias de última hora que, ao enviarem o espectador para fora da sala com a cabeça girando, procuram evitar que este pense muito sobre o que viu. Porém, se o que certo personagem explica no ato final é verdade, por que Mameha levou tanto tempo para procurar Sayuri na okiya de sua rival? Isto para não mencionar que as implicações do que é dito revelam um aspecto repulsivo da natureza daquela figura, não é mesmo? Nos dias de hoje, aquele personagem provavelmente teria sérios problemas caso seu computador fosse apreendido pela polícia.

Para finalizar, é importante observar que a decisão dos realizadores em escalar atrizes chinesas para viver prostitut... gueixas, figuras tradicionais do Japão, é profundamente desrespeitosa para com os chineses, em particular, e os asiáticos, de modo geral, já que pressupõe que nenhum ocidental notará a diferença. Além de refletir a postura ignorante dos norte-americanos, a escalação expõe, também, a falta de sensibilidade com relação a uma rixa que remonta à Segunda Guerra Mundial. E se você acha que nada disso importa, eu pergunto: o que sentiria caso um cineasta de Hollywood fizesse um filme sobre prostitutas argentinas e escalasse importantes atrizes brasileiras para vivê-las?

02 de Fevereiro de 2006

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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