Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
21/09/2015 | 01/01/1970 | 4 / 5 | 3 / 5 |
Distribuidora | |||
Duração do filme | |||
115 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Aly Muritiba. Com: Fernando Alves Pinto, Lourinelson Vladmir, Mayana Neiva, Giuly Biancato, Michelle Pucci, Vinicius Sabbag.
A morte de uma pessoa amada traz, com a dor, a necessidade de se encontrar alguma forma de continuar percorrendo um caminho obstruído pelo luto. No processo, tentamos preservar a imagem de quem perdemos, mas – humanos que somos – esta é uma tarefa impossível, levando nossas lembranças mais ou menos confiáveis a uma gradual substituição por uma idealização, por um conceito da pessoa morta. Pois o que este longa escrito e dirigido por Aly Muritiba busca investigar é como reagiríamos caso fôssemos obrigados a confrontar a falsidade da imagem que nós mesmos criamos de quem partiu.
Quando Para Minha Amada Morta tem início, vemos Fernando (Alves Pinto) deitado sobre as roupas da esposa até que, momentos depois, seu filho pequeno sobe em suas costas, abraçando-o. É um plano que, por si só, já apresenta de forma econômica e elegante a trajetória do protagonista, que, em busca da esposa que ocupava aqueles vestidos agora vazios, dá as costas ao seu presente e ao seu futuro, incluindo-se, aí, a criança que gerou. Porém, ao mergulhar nos objetos pessoais da companheira, Fernando acaba encontrando fitas gravadas em um quarto de hotel e vê, em sua televisão, o registro da traição que desconhecia – e que, ainda mais doloroso, inclui a esposa declarando ao amante que este foi “a melhor coisa que aconteceu em (sua) vida”. Devastado, o viúvo – que trabalha como fotógrafo da polícia civil – logo descobre a identidade do sujeito no vídeo e, usando a religião deste como elemento motivador, consegue alugar o barracão localizado no fundo da casa que Salvador (Vladmir) divide com a esposa Raquel (Neiva) e com as duas filhas, incluindo a adolescente Estela (Biancato).
Com esta situação estabelecida, seria de se esperar que Muritiba investisse no suspense ou no melodrama, mas, felizmente, o diretor se mostra menos interessado num simples exercício de gênero e mais fascinado em desenvolver seus personagens e a dinâmica entre estes – e, assim, quando o suspense vem (e há momentos incrivelmente tensos em Para Minha Amada Morta), este surge não de recursos convencionais e clichês, mas do fato de conhecermos aquelas pessoas e nos importarmos com elas. Não que o cineasta e sua equipe não busquem criar uma atmosfera opressiva, pois o fazem, e muito bem, ao investirem numa fotografia sombria e melancólica e em admiráveis representações visuais dos sentimentos de seu personagem principal – e notem, por exemplo, como o diretor de fotografia Pablo Baião enquadra Fernando e o filho no sofá enquanto a outra extremidade do móvel surge vazia e mergulhada na escuridão, indicando a sentida ausência da esposa/mãe.
É eficiente, também, a estratégia de Muritiba para levar o espectador a apreender, a partir de elementos sutis, a história do relacionamento do casal e da vida (e morte) de Ana (Pucci): a cama hospitalar no quarto do casal, os recortes do passado da moça nas fitas (com apresentações de balé e ginástica olímpica), o registro de seu casamento, o fato de ambos serem advogados (sugerindo que se conheceram na faculdade) e assim por diante. Da mesma maneira, é revelador perceber como os quartos nos quais Ana e Salvador se encontravam eram baratos, sujos, desagradáveis, contrapondo o romance com uma realidade pouco romântica e nada idealizada – e aqui, de novo, Muritiba e sua designer de produção Monica Palazzo criam uma imagem forte, belíssima e repleta de simbolismos quando Fernando se vê no espelho de um dos quartos e um pedaço partido deste acaba por provocar um vazio – literal, mas com tons metafóricos – em seu peito.
Trazendo ainda alguns planos-sequência que não só conferem imediatismo e traços maiores de realismo à narrativa, mas que também impressionam por sua competência técnica (aquele que inclui os dois homens sobre um telhado é particularmente notável), Para Minha Amada Morta é um daqueles filmes que constantemente levam o público a analisar seus quadros com interesse redobrado por saber que foram construídos com múltiplas camadas. Em certo ponto, por exemplo, vemos Fernando em primeiro plano enquanto, ao fundo e desfocados, Salvador e a filha brigam como resultado da discórdia que o protagonista vem plantando na família, enquanto, em outro longo e fantástico plano, o viúvo conversa com o “rival” e segura uma pá sobre os ombros, numa sugestão de autocrucificação (e o filme tem subtextos religiosos recorrentes), mas também de ameaça a Salvador.
Compondo o personagem principal com uma voz baixa e triste e através de gestos lentos que indicam sua depressão, Fernando Alves Pinto é um ator que naturalmente sugere melancolia e cujo estilo minimalista consegue frequentemente projetar uma imensa turbulência interna. Quando observa o filho, em certa cena, seu leve sorriso indica seu amor pelo garoto, mas seus olhos parecem estudá-lo como se estivesse encarando... o quê? O legado de Ana? Sua continuidade? A dor que está provocando na criança? Embora as respostas possam ser múltiplas, percebemos que há algo mais complexo passando por sua cabeça em vez de pura admiração paternal. Em contrapartida, quando Fernando descobre a traição da esposa, o rosto do ator se contrai visivelmente e sua boca se projeta numa curva para baixo que parece a manifestação física de uma câimbra em sua alma. Além disso, Muritiba escancara o perigoso mergulho emocional do sujeito num plano aterrorizante no qual vemos seu filho mexendo no revólver que o policial deixara sobre a mesa, expondo como sua obsessão pelo passado está ameaçando seu futuro.
O descaso crescente de Fernando para com seu filho, diga-se de passagem, é também ilustrado de forma comovente através de cenas como aquelas que trazem o garoto solitário no canto do pátio da escola e – ainda mais trágico – assumindo o cotidiano de cuidar das roupas da mãe no lugar de seu pai quando este afunda na obsessão pelo caso mantido por sua esposa. Aliás, o roteiro de Muritiba merece créditos por não transformar Salvador em um antagonista unidimensional, permitindo que o ator Lourinelson Vladmir acrescente nuances ao sujeito, que se mostra – mesmo tomado pelo machismo padrão na sociedade brasileira – mais humano do que poderíamos esperar, exibindo remorso por ter magoado sua esposa ao mesmo tempo em que deixa claro que realmente se apaixonou por Ana. Para finalizar, Mayana Neiva, mesmo com um tempo menor de tela, evoca uma dor contida em Raquel que beira a resignação, tornando-a tão trágica quanto o próprio Fernando.
Desperdiçando a oportunidade que o acaso lhe dá para ignorar o romance de sua esposa com Salvador (quando a fita que trazia as imagens arrebenta dentro do aparelho), Fernando é um personagem que parece amaldiçoado ao sofrimento, começando a reconstruir seu passado de maneira literal ao reparar o arquivo de Ana com tesoura e durex. O que o pobre homem falha em perceber, com sua obsessão mal direcionada, é a ironia de abrir mão daquilo que tem (seu filho, seu futuro) por algo que (não) tinha – e quando mente ao dizer que sua esposa está adoentada, a conclusão é clara: o que está doente não é sua companheira fictícia, mas a ideia de sua amada real.
Uma ideia impossível de reconstruir, mas que talvez não o destrua completamente caso opte por renascer – em mais um símbolo religioso que, representado pelo mar (num batismo metafórico), amarra com sensibilidade um filme doloroso, mas não sem esperança.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Brasília 2015.
21 de Setembro de 2015