Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
16/06/2016 | 01/01/1970 | 4 / 5 | / 5 |
Distribuidora | |||
ArtHouse | |||
Duração do filme | |||
93 minuto(s) |
Dirigido por Cláudio Assis. Roteiro de Hilton Lacerda e Ana Carolina Francisco. Com: Matheus Nachtergaele, Rafael Nicácio, Marcélia Cartaxo, Artur Maia, Vertin Moura, Francisco de Assis Moraes, Clarice Fantini, Fabiana Pirro, Gabrielle Lopes, Pally Siqueira e Jards Macalé.
Big Jato é um filme sobre a libertação de um aspirante a poeta das amarras que a miséria, a sociedade, sua família e ele mesmo criaram. É também um filme sobre a descoberta do amor romântico, do tesão e da paixão pela criação. E é, finalmente, um filme que comprova que Matheus Nachtergaele é um dos melhores atores em atividade no Cinema mundial.
Adaptado por Ana Carolina Francisco e por Hilton Lacerda (diretor do lindo Tatuagem e colaborador habitual de Cláudio Assis), o roteiro parte do livro homônimo de Xico Sá ao acompanhar o protagonista, também Xico (Nicácio), enquanto este atravessa a adolescência na pequena cidade fictícia Peixe de Pedra. Filho de um sujeito alcóolatra e adoentado que ganha a vida limpando fossas sépticas (Big Jato é o nome do caminhão que usam na tarefa), Xico se vê dividido entre a fidelidade ao pai e a fascinação pelo tio Nelson (ambos interpretados por Nachtergaele), locutor de uma pequena rádio local e inimigo de qualquer tipo de trabalho. Certo dia, porém, o cotidiano do rapaz muda quando uma bela jovem (Siqueira) visita sua casa para comprar alguns produtos de beleza vendidos por sua dedicada mãe (Cartaxo, sensacional como de hábito).
Adotando uma abordagem quase fabulesca em sua construção narrativa, Big Jato é fotografado por Marcelo Durst com cores quentes e saturadas que transformam as locações em um cenário com personalidade e atmosfera próprias. Ao mesmo tempo, o design de produção confere uma atemporalidade importante àquele mundo: se uma personagem tem um celular moderno (embora este nunca consiga sinal), o caminhão do Velho surge antiquado como boa parte dos figurinos, que constantemente remetem à década de 70. Com isso, o longa fortalece a sugestão de estar contando uma história que, mesmo particular em seus detalhes, traz questionamentos universais.
Surpreendentemente lúdico para uma obra assinada por Assis, o filme encontra uma leveza fundamental para sua eficiência no fato de ser contado a partir do ponto de vista do jovem Xico: mesmo que conte com muitos personagens marcantes, a narrativa enfoca estas pessoas através do filtro do adolescente, o que explica as fortes caracterizações e, claro, elementos simbólicos como o nome da loja na qual sua amada trabalha (“Pureza Modas”). Mas ainda mais importante é constatar como as influências exercidas pelas figuras paternas de sua vida acabam moldando o homem no qual o jovem gradualmente se transforma – e aqui é fundamental ressaltar a beleza da composição de Matheus Nachtergaele: num aspecto puramente físico, a transformação do ator é chocante ao ressaltar a fragilidade e o envelhecimento precoce do pai de Xico, com sua voz rouca e os modos frequentemente combativos, contrastando-os com a jovialidade de Nelson, que se comunica com vivacidade e exibe energia contagiante em seus maneirismos e modos expansivos (a prótese dentária usada para compô-lo torna a transformação ainda mais impressionante).
O interessante é que, aos poucos, Big Jato também parece sugerir que Xico, Nelson e o Velho são apenas facetas da mesma pessoa – não que não existam de fato no universo do filme, pois existem, mas acabam indicando que foram criados como uma forma de compreender/homenagear/reconhecer as influências que moldaram o verdadeiro Xico (ou a persona deste). É revelador, por exemplo, como o mesmo homem que constrói sua vida a partir do excremento alheio acaba enxergando a poesia – ou a tentativa de criá-la – como um esforço reprovável, vergonhoso, ao passo que, no extremo oposto, o tio avesso ao esforço acaba empurrando o sobrinho para a ação que lhe permitirá transformar a “merda” que o cerca em Arte.
Não é à toa, portanto, que em determinado momento, quando ouvimos a narração em uma das transições oníricas que percorrem a projeção, a voz infantil do narrador seja sobreposta por uma mais grave, adulta, reforçando a ideia de que estamos acompanhando versões diferentes do mesmo artista. Também não é acaso que o longa traga, em seus minutos iniciais, a imagem do protagonista cuspindo um peixe de pedra, como se buscasse expulsar de si a apatia que poderia transformá-lo num dos fósseis constantemente citados pelo tio como forma de insultar a população da cidade. (E igualmente curioso é perceber a ironia na prisão de ventre crônica da esposa do limpador de fossas sépticas, numa representação psicossomática de sua rejeição ao que este faz para ganhar dinheiro.)
Dono de um espírito ansioso por liberdade (percebam como, mesmo no caminhão do pai, Xico se coloca para fora da janela para sentir o vento e a luz do sol), o protagonista de Big Jato é um jovem que, condenado por suas circunstâncias, percorre um caminho tortuoso, dolorido, mas também educativo até perceber que pode traçar a própria trajetória – e, assim, que Cláudio Assis conclua a narrativa com uma referência ao desfecho de Os Incompreendidos não é apenas apropriado, mas indício de um artista com maturidade suficiente para saber dialogar com a própria Arte.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival de Brasília 2015.
22 de Setembro de 2015