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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
07/10/2015 30/09/2015 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Sony
Duração do filme
123 minuto(s)

A Travessia
The Walk

Dirigido por Robert Zemeckis. Roteiro de Robert Zemeckis e Christopher Browne. Com: Joseph Gordon-Levitt, Ben Kingsley, Charlotte Le Bon, James Badge Dale, Ben Schwartz, Steve Valentine, Benedict Samuel, César Domboy.

Na manhã do dia 7 de Agosto de 1974, o francês Philippe Petit deu um passo em direção a um vazio de 420 metros de altura e, segundos depois, se viu caminhando sobre um cabo estreito amarrado entre as torres norte e sul do World Trade Center. Ao longo dos 45 minutos seguintes, ele se equilibraria em meio ao vento e a polícia, atraindo a atenção de dezenas de pessoas que passavam pelo local e, logo, de todo o mundo. Porém, para que a façanha pudesse ocorrer, Petit e um pequeno grupo de cúmplices tiveram que executar um plano arriscado a fim de invadir os prédios e prender os cabos – uma ação que, por sinal, gerou um documentário magistral em 2008, O Equilibrista.


Porém, este A Travessia, dirigido por Robert Zemeckis e co-escrito por este ao lado de Christopher Browne, se diferencia inteligentemente daquele filme ao se concentrar não no ato em si, mas no ator. Há, claro, o interesse em recontar as dificuldades experimentadas pelo grupo, mas o longa compreende que, numa obra de ficção (mesmo baseada em fatos reais), conhecer o herói é frequentemente tão importante quanto testemunhar seu heroísmo. Ao mesmo tempo, Zemeckis obviamente encara Petit como um homem comprometido com – e até mesmo disposto a morrer por – sua Arte e, neste sentido, este projeto acaba também sendo uma bela forma de um artista reverenciar outro.

Um dos temas principais de A Travessia, diga-se de passagem, é justamente a natureza da Arte e dos artistas, que, em momentos diversos da projeção, são descritos como “anarquistas” e “subversivos”. E, de fato, não seria de se espantar caso o filme abrisse com a reflexão de Salman Rushdie sobre como “pessoas com tendência à tirania temem a Arte por reconhecerem que esta não é controlável” ou com a constatação de Anaïs Nin de que “a função da Arte é renovar nossa percepção sobre o familiar”. Sim, ela pode reforçar o convencional ou difundir ideais autoritários, mas as obras mais resistentes ao tempo são aquelas que questionam o status quo e que, contestadoras, encontram a beleza no comum, o fantástico no cotidiano e a poesia na prosa.

Quando Philippe Petit balança sobre o abismo, o faz porque enxerga valor estético no ato e simbólico no risco. Da mesma maneira, quando as pessoas se reúnem para apreciar sua caminhada sobre o cabo, são motivadas não pela possibilidade de testemunharem uma tragédia (embora, sim, sempre existam os urubus de plantão), mas por verem, no artista, um representante da humanidade subvertendo um espaço que até então simbolizava apenas poder econômico e criando um contexto novo para algo cujo simbolismo parecia imutável. Para Zemeckis e seu filme, Petit é uma representação da coragem que todo criador precisa reunir ao se expor: sempre que começa a dirigir um filme, a escrever um conto ou a compor um personagem, o artista está se posicionando sobre um arame a centenas de metros do chão. E o faz para se expressar, mas também para construir uma ponte com o mundo.

Neste sentido, Zemeckis é um dos que mais se arriscam em Hollywood: inquieto em sua busca por constantes desafios narrativos e tecnológicos, o diretor da trilogia De Volta para o Futuro e de Contato jamais hesitou antes de mudar os rumos de sua carreira, adotando precocemente o 3D e a captura de performance em O Expresso Polar e A Lenda de Beowulf, saltando entre gêneros diversos ou mesmo revolucionando técnicas antigas em trabalhos como Uma Cilada para Roger Rabbit (combinando animação e live-action) e Forrest Gump (inserindo atores em imagens de arquivo). Mas, acima de tudo, o cineasta sempre demonstrou uma habilidade invejável para contar visualmente suas histórias, investindo em posicionamentos e movimentos de câmera inesperados (mas que constantemente acabam se estabelecendo como escolhas perfeitas) ou ilustrando ideias complexas através de imagens surpreendentemente simples – como, por exemplo, ao transformar Petit (Gordon-Levitt) em sua versão infantil ao enxergar o próprio reflexo em um quadro ou ao acompanhar sua evolução na corda bamba através do desaparecimento dos cabos extras que empregou no aprendizado.

Aliás, se há uma característica autoral no Cinema de Robert Zemeckis, esta reside nos planos que geralmente surpreendem pela inventividade, como ao trazer a câmera passando por cima da corda na qual Petit se encontra (praticamente raspando em seu calcanhar) ou ao criar uma rima visual elegante ao adotar um plongée em sua primeira tentativa de equilibrismo apenas para repeti-lo quando o sujeito se encontra prestes a iniciar a travessia do título. De forma similar, o diretor (auxiliado pelo montador Jeremiah O’Driscoll) mantém o ritmo da narrativa através de transições como aquela que, focada no rótulo de uma caixa, salta de uma casa para o interior de um veículo em movimento sem cortes aparentes. Em contrapartida, decisões como a de fotografar o início da carreira de Petit em preto-e-branco com toques aleatórios de cor soam como tropeços, enquanto outros já se apresentam como puro exibicionismo, servindo apenas para tirar o espectador da imersão naquele universo (como na cena em que vemos o protagonista através de um calendário e atravessamos uma das datas – literalmente – enquanto entramos na sala na qual este se encontra).

E se o roteiro também é prejudicado por sua parcela de clichês (quantas vezes teremos que ver um casal - fadado a se apaixonar – brigando ao se conhecer?) e por um esforço exagerado para criar instantes bonitinhos na trajetória de Petit, não menos problemática é a decisão de estruturar o filme em torno da narração do equilibrista, que surge na tocha da Estátua da Liberdade recontando suas ações. Ora, se por um lado há o paralelo entre dois franceses (Petit e a Estátua) estabelecendo-se como ícones em/de Nova York, por outro há a intromissão constante de suas descrições redundantes de fatos que acabamos de testemunhar na tela. Ainda assim, sou quase levado a aceitar o recurso apenas em função do instante no qual Philippe, em seu papel de narrador, relembra a calma, a serenidade e a paz que experimentou em sua travessia enquanto, ao fundo, vemos as torres e nos lembramos de como viriam a terminar algumas décadas depois.

Além disso, as falhas pontuais do longa (incluindo seu fraco primeiro ato) são prontamente apagadas a partir do instante em que Petit começa a planejar seu “golpe” - incluindo a construção de uma maquete que deixaria Doc Brown orgulhoso. A partir daí, Zemeckis brinca com nossas expectativas e cria tensão, por exemplo, ao nos manter sempre na mesma torre em que Petit se encontra enquanto este conversa com os cúmplices no arranha-céu gêmeo, levando-nos à mesma ansiedade que o sujeito deve ter sentido ao não saber o que ocorria do outro lado. Para completar, o diretor faz um uso preciso do 3D para provocar arrepios no público ao colocá-lo sobre o cabo com o personagem de Joseph Gordon-Levitt (e confesso ter sentido frios na barriga em diversos pontos da projeção).

O ator, vale apontar, é outro que se arrisca em suas decisões aqui: se carrega no sotaque francês de Petit, quase transformando-o numa caricatura, Gordon-Levitt compensa o exagero ao evocar sua integridade como artista, ressaltando, entre outras coisas, sua recusa em usar uma linha de segurança, já que isso diminuiria a autenticidade de sua obra, convertendo-a quase numa dessas ilustrações “pinte com números”. Contudo, ainda mais importante é a habilidade do intérprete ao retratar o prazer que Petit sente durante a travessia, quando parece se recusar a encerrá-la por não querer deixar de viver a sensação inigualável de estar criando algo único. Não à toa, é ali que o Philippe Petit criado pelo ator parece finalmente se sentir à vontade e em paz depois de passar os dois primeiros atos se comportando como um obcecado incapaz de relaxar.

E é por isso que a lembrança da finitude do World Trade Center – algo que Zemeckis sabe estar embutido em cada quadro de seu filme – é tão dolorosa, já que grita a constatação de que a mesma espécie capaz de criar Arte a partir do improvável também demonstra talento infinito para corromper, envenenar e destruir.

O que não nos impede de, por um breve momento, enquanto observamos artistas como Philippe Petit se equilibrando sobre o nada, celebrarmos o que temos de melhor e mais inspirador.

29 de Setembro de 2015

Videocast (sem spoilers):

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

 

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