Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
03/12/2015 | 26/09/2014 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Pandora | |||
Duração do filme | |||
105 minuto(s) |
Dirigido por Alberto Rodríguez. Roteiro de Rodríguez e Rafael Cobos. Com: Javier Gutiérrez, Raúl Arévalo, Antonio de la Torre, Nerea Barros, Salva Reina, Jesús Castro, María Varod, Perico Cervantes, Ana Tomeno, Manuel Salas.
Pecados Antigos, Longas Sombras é um filme que, sob a superfície de suspense policial, constrói um painel complexo de um país lidando com feridas que jamais fecharam. Co-escrito pelo diretor Alberto Rodríguez ao lado de Rafael Cobos, o longa é ambientado alguns anos depois da morte do general Franco, quando, no início da década de 80, dois detetives são enviados a um pequeno vilarejo com o objetivo de investigar o desaparecimento de duas adolescentes. Quando os corpos das garotas são descobertos e histórias de crimes antigos vêm à tona, porém, Pedro (Arévalo) e Juan (Gutiérrez) percebem estar envolvidos na caça a um serial killer que pode ou não ter ligação com uma conspiração local para explorar sexualmente as jovens da vila.
Como trama policial, Pecados Antigos é uma obra tensa, bem estruturada e intrigante – virtudes, claro, importantíssimas em um exemplar do gênero. No entanto, a beleza do filme é que estas nem são suas maiores qualidades, que residem na complexa e reveladora dinâmica entre os dois policiais. Representantes de culturas políticas diametralmente opostas, Pedro e Juan formam o elemento clássico de um filme policial: os parceiros que se desentendem, mas se complementam e desenvolvem um respeito mútuo. Enquanto o primeiro, mais jovem, foi enviado para o interior como punição por ter publicado uma carta num jornal de Madri contra um general, o segundo, bem mais pragmático, busca se afastar de questionamentos políticos embora, aos poucos, percebamos que seu envolvimento com a ditadura de Franco foi mais profunda do que sugere.
Aliás, não é à toa que, ao chegarem no pequeno hotel que lhes servirá de lar nas semanas seguintes, eles encontram no quarto um crucifixo que traz, colados na madeira, retratos de Franco e Hitler, evidenciando que a democracia pode ter chegado à Espanha depois de 35 anos de ditadura, mas não sem deixar resquícios fortíssimos de sua lógica e de sua influência (o que a punição a Pedro comprova). Assim, Rodríguez aponta como a falta de um processo de reparo pelos abusos cometidos pela ditadura contribui para manter o país em um estado de cicatrização interrompida: os algozes podem ter sido removidos do poder, mas as feridas que provocaram permanecem escancaradas e cheias de pus.
Mas Pecados Antigos, Longas Sombras (como adoro esse título em português) não simplifica a questão nem seus personagens: Pedro pode ser idealista, mas ressente-se do preço que paga por isso, enquanto Juan, mais eficaz em seus métodos, parece estar sempre em busca de uma redenção por suas ações desprezíveis em prol da ditadura à qual serviu. Além disso, a falta de ética nas ações da dupla sugere um país institucionalmente corrompido pelas décadas de brutalidade: eles prendem suspeitos sem mandados, grampeiam telefones ilegalmente e torturam testemunhas com a certeza de uma impunidade remanescente da autoridade que antes detinham (algo que muitos elementos da PM brasileira – uma criação de nossa ditadura – repetem por aqui, como podemos acompanhar todos os dias através do noticiário).
Construindo uma atmosfera de melancolia contínua, Rodríguez e seu diretor de fotografia Alex Catalán adotam uma paleta triste e dessaturada que, pontuada por elementos de intensa cor vermelha (uma rima visual óbvia, mas não menos eficaz, que remete à violência do presente e do passado), estabelecem o longa como um trabalho visualmente fascinante. Para completar, o cineasta obviamente faz referências ao magistral sul-coreano Memórias de um Assassino logo em seus momentos iniciais ao trazer os detetives percorrendo uma pequena estradinha de terra situada ao longo de um extenso arrozal – uma das várias similaridades entre as duas obras.
As paisagens naturais, diga-se de passagem, são instrumentais na estratégia narrativa do filme: constantemente, somos apresentados a planos gerais que descortinam o ambiente e que criam um ótimo contraste com as decadentes intervenções humanas, como casas abandonadas ou mesmo em ruínas (outro eco de um passado destrutivo). Da mesma maneira, é interessante perceber como Rodríguez parece obcecado pela imagem de garças (avermelhadas, claro) em revoada, o que complementa perfeitamente a obsessão das jovens do vilarejo em abandonar o lugar num sonho de migração que resulta em tragédia.
Trazendo os personagens sempre com as peles cobertas por suor (sugerindo um calor sufocante que contamina o espectador), Rodríguez também inclui, em seu excelente filme, sequências de perseguição atípicas e profundamente eficientes em pântanos e sob a chuva – e não apenas aquela que encerra a projeção, mas outra, que traz uma tentativa de seguir um carro à noite, representam momentos absolutamente memoráveis.
Pontuado por fabulosos planos aéreos que, em plongée, transformam a geografia local em quadros que quase flertam com o abstrato, Pecados Antigos complementa sua riqueza narrativa ao usá-los de forma autenticamente lynchniana ao sugerir que, sob a beleza deste mundo magnificamente belo em que vivemos, há constantemente a intromissão destrutiva e desfigurante de indivíduos que, infelizmente, deixam suas marcas por muito, muito tempo.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Festival do Rio 2015.
02 de Outubro de 2015