Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
03/12/2015 | 07/12/2015 | 4 / 5 | 3 / 5 |
Distribuidora | |||
Warner | |||
Duração do filme | |||
121 minuto(s) |
Dirigido por Ron Howard. Roteiro de Charles Leavitt. Com: Chris Hemsworth, Tom Holland, Benjamin Walker, Ben Whishaw, Cillian Murphy, Frank Dillane, Charlotte Riley, Jordi Mollà, Donald Sumpter, Joseph Mawle, Michelle Fairley e Brendan Gleeson.
Publicado em 1851 por Herman Melville, Moby Dick é um romance de aventura, um estudo sobre obsessão e uma interpretação fascinante do velho embate entre Homem e Natureza – além, claro, de trazer uma das frases de abertura mais famosas da Literatura: “Trate-me por Ishmael”. O que talvez alguns não saibam, porém, é que Melville se inspirou em um incidente real para construir sua obra: o naufrágio do navio baleeiro Essex, ocorrido em 1820. E é justamente nesta história (recontada em um livro de Nathaniel Philbrick) que se baseia o roteiro de No Coração do Mar escrito por Charles Leavitt (Diamante de Sangue).
Com uma estrutura dividida em dois tempos, o filme de Ron Howard acompanha os esforços de Melville (Whishaw) para convencer Thomas Nickerson (Gleeson), sobrevivente do Essex, a contar o que ocorreu de fato em alto-mar décadas antes – uma conversa que é entrecortada pelas memórias do velho marinheiro e que envolvem o capitão George Pollard (Walker) e seu primeiro imediato Owen Chase (Hemsworth). Disputando o respeito da tripulação em uma expedição para matar o maior número possível de baleias a fim de coletar espermacete, os dois homens exibem uma forte antipatia mútua que só é colocada em segundo plano quando um imenso cachalote ataca o barco, colocando a vida de todos a bordo em perigo. Com isso, o longa se apresenta como uma mistura de O Grande Motim, Náufrago e A Vida de Pi, substituindo um motor dramático por outro de forma fluida à medida que a projeção avança.
Empregando a rivalidade entre Chase e Pollard como base de seu arco narrativo principal, No Coração do Mar já apresenta o primeiro – e claro protagonista - de maneira objetiva ao retratá-lo como um homem que, devotado à esposa e determinado a oferecer a esta (e ao bebê que esperam) uma vida mais confortável, enfrenta um forte preconceito de classe em sua tentativa de ser promovido a capitão. Vivido por Chris Hemsworth com um bom equilíbrio entre a raiva contida, uma certa vulnerabilidade emocional e uma óbvia competência profissional, Chase logo convence o espectador acerca de suas habilidades ao tomar a iniciativa de resolver um problema nos minutos iniciais da jornada – o que contribui, também, para contrapô-lo à inexperiência de Pollard. Trazendo cicatrizes no rosto que indicam o perigo sempre presente em suas viagens, o sujeito é humanizado não só pelo amor à esposa, mas pelo carinho com que se relaciona com o amigo Matthew (Murphy), cujos esforços para se manter sóbrio também operam como um bom atalho para conferir dimensão a um personagem que poderia se tornar facilmente esquecível.
Enquanto isso, Benjamin Walker compõe Pollard como um indivíduo que tenta esconder a própria insegurança ao adotar modos arrogantes, mas que, aos poucos, evita a vilania ao expor a pressão sob a qual vive para fazer jus às expectativas impostas por um sobrenome famoso e ao demonstrar capacidade de reconhecer os méritos do homem que encara como inimigo. Além disso, a dinâmica entre os dois personagens acaba despertando uma discussão temática que segue contemporânea, quase 200 anos depois, ao explicitar os privilégios de uma elite que se perpetua ao impedir a ascensão alheia, indicando que o mérito pessoal sempre encontrará uma barreira difícil de se transpor ao ver-se limitado por um contexto social injusto em sua essência.
Porém, o subtexto temático e a relação entre Chase e Pollard compõem apenas parte dos interesses de Ron Howard, que se mostra eficiente também ao ilustrar o prazer que aqueles homens e sua tripulação experimentam ao navegar – e a sequência que acompanha a abertura das velas e a aceleração do barco em meio às ondas é hábil ao sugerir o que realmente move aqueles marinheiros a ponto de levá-los a permanecer anos distantes de suas famílias. À medida que a narrativa avança, contudo, o cineasta substitui aquela alegre energia por uma tensão crescente diante da ameaça representada pelo cachalote e pelo desespero absoluto provocado pela situação extrema que o confronto acaba por originar. Além disso, é curioso como Howard adota uma lógica visual calcada em um imenso número de planos-detalhe que, revelando desde elementos como uma espiga de milho devorada por um vira-lata até as cordas deslizando no Essex enquanto as velas são manuseadas (passando por facas sendo amoladas, moedas atiradas em uma balança e assim por diante), buscam – e conseguem - mergulhar o espectador na realidade do início do século 19.
Já em outros momentos, o diretor procura simplesmente criar planos esteticamente imponentes, como aquele que traz, em contraluz, uma gaivota raspando uma das asas sobre o mar agitado e outros que exploram a beleza opressiva do oceano ao redor dos diminutos náufragos. Por outro lado, os efeitos digitais nem sempre se mostram convincentes: a cidade vista no primeiro ato e revelada em quadros abertos é artificial demais e, mais tarde, várias sequências que acompanham os baleeiros durante a caça exibem um recorte em torno dos atores que escancara o green screen empregado como fundo. Para finalizar, o roteiro tem sua parcela de problemas óbvios ao incluir passagens que o narrador claramente não testemunhou, embora a ideia de usar a “confissão” como forma de exorcizar seus demônios seja eficiente como motivação dramática. (E gosto bastante da natureza evocativa da vela que escorre quando o sujeito finalmente expõe seu maior segredo.)
Ainda assim, por mais que admire a competência da narrativa na maior parte do tempo, não posso ignorar a indefinição desta quanto ao seu ponto central: o cachalote e o que representa na história. Sem jamais se decidir se o encara como um monstro mítico ou como um símbolo da beleza da Natureza, No Coração do Mar tenta abraçar as duas interpretações sem perceber que se contradizem. Assim, ao mesmo tempo em que Chase expressa prazer ao caçar o animal (“O primeiro é meu!”) e o descreve como “monstro”, sua expressão é de lamento após a morte das baleias – uma tentativa clara (e artificial) de incutir uma sensibilidade moderna em um personagem do passado que sabemos rejeitá-la.
Não que uma mensagem ambientalista seja incompatível apenas por se tratar de uma trama situada no passado: afinal, quando outro personagem comenta que petróleo foi descoberto “no chão”, logo nos lembramos, sem a necessidade de pregações, de como somos uma espécie que consegue, no máximo, substituir uma espécie de predação por outra.
E, desta maneira, a conclusão é inevitável: no final das contas, os monstros somos nós.
08 de Dezembro de 2015