Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
14/01/2016 | 23/10/2015 | 4 / 5 | 4 / 5 |
Distribuidora | |||
Universal | |||
Duração do filme | |||
122 minuto(s) |
Dirigido por Danny Boyle. Roteiro de Aaron Sorkin. Com: Michael Fassbender, Kate Winslet, Seth Rogen, Jeff Daniels, Michael Stuhlbarg, Katherine Waterston, Makenzie Moss, Ripley Sobo, Perla Haney-Jardine, Sarah Snook, John Ortiz, Adam Shapiro.
“Você não é programador, não é engenheiro e não é designer. O que você faz?!”, pergunta Steve Wozniak, em tom de incredulidade e mágoa, a Steve Jobs em certo momento deste novo trabalho sobre a vida do cofundador da Apple. Wozniak, claro, é o gênio responsável pelo desenvolvimento de boa parte da tecnologia que transformaria a empresa em referência mundial – e, assim, é natural que se espante diante do fato de ser “Jobs” o nome que vem à mente de qualquer um ao pensar nesta.
E, convenhamos, é uma pergunta relevante: o que Jobs fazia, afinal? E quem ele era, na realidade?
A resposta à primeira indagação não é difícil e é oferecida de forma didática neste filme escrito por Aaron Sorkin e dirigido por Danny Boyle: se os músicos de uma orquestra tocam os instrumentos, Jobs era o condutor que tocava a orquestra. Seu gênio era manifestado em seu talento para vendas, marketing e o direcionamento de sua equipe rumo à criação de produtos que os consumidores ainda não sabiam que desejavam. Já a segunda questão é bem mais complexa e deu origem a livros, documentários e ao recente jOBS, que, mesmo razoável, comprovava que a semelhança física com o biografado deve ser a menor preocupação de um cineasta ao escalar um ator, já que Ashton Kutcher praticamente afundava o projeto. Porém, o mais intrigante em relação àquele longa é que parecia não suportar seu protagonista, enquanto esta nova produção se mostra fascinada por ele.
Dividida em três atos que giram em torno das apresentações do Macintosh (1984), do NeXT (1988) e do iMac (1998), a narrativa se concentra nos minutos que antecedem cada discurso, acompanhando Jobs (Fassbender) enquanto discute questões logísticas com a competente Joanna Hoffman (Winslet), confronta uma ex (Waterston) com quem teve uma filha que se recusa a assumir (Moss, Sobo e Haney-Jardine), faz exigências técnicas ao engenheiro Andy Hertzfeld (Stuhlbarg), debate seu passado com o executivo John Sculley (Daniels) e, claro, se desentende com Woz (Rogen). Retratado desde o primeiro momento como um indivíduo metódico, detalhista e extremamente exigente, Jobs se apega a questões mínimas de suas apresentações e a elementos estéticos que ninguém notaria enquanto consegue insultar e menosprezar praticamente todos que o cercam.
Aliás, a decisão de Sorkin de focar os bastidores dos discursos e ignorar justamente as falas que tornaram o sujeito uma espécie de “flautista de MacHeadlin” é reveladora, já que determina seu interesse não pela persona pública de Jobs, mas pelo indivíduo em si. No processo, é óbvio que Sorkin toma todo tipo de liberdade criativa, convenientemente repetindo os mesmos encontros em cada período e abordando conversas que parecem continuar ao longo dos anos – o que, longe de ser um problema, representa uma forma econômica de explorar tópicos essenciais da biografia do protagonista, como sua relação com Woz, sua relutância em assumir a paternidade de Lisa, seu rancor por ter sido afastado da Apple e assim por diante.
A inteligência desta estratégia é que, ao manter o cenário fixo nas três épocas (a lógica do espaço é a mesma), Sorkin ressalta as mudanças nos personagens, desde suas aparências até suas prioridades. Além disso, aquilo que realente importa a Jobs, percebemos, só se torna mais intenso com o passar dos anos: sua dedicação ao marketing cuidadoso, seu senso estético e seu dom inequívoco para vendas, já que mesmo durante suas discussões pessoais parece estar sempre tentando vender algo (Suas ideias? Valores? A si mesmo? Ou melhor: a ideia de si mesmo?). Encarnado por Michael Fassbender com um equilíbrio delicado entre a intensidade maníaca e uma fria serenidade, Steve Jobs sabe que a melhor arma para se vencer um debate reside em manter o controle sobre os rumos da discussão – e, assim, ele basicamente fala sobre o que lhe vem à mente, mudando de assunto conforme seus interesses imediatos e surpreendendo seus interlocutores com a velocidade com que é capaz de transformar uma defesa em agressão. No entanto, o mais fascinante talvez seja constatar como, com o passar do tempo, o ator altera o comportamento do personagem em público, sugerindo a compreensão que Jobs passa a ter da importância de projetar uma imagem de mestre zen (já longe do palco e da plateia, seu temperamento segue explosivo).
Ancorado em um roteiro que contém todas as convenções autorais de Aaron Sorkin, Steve Jobs carrega nos diálogos e, consequentemente, na necessidade de mudar constantemente de cenário para evitar a teatralidade – o que, por sua vez, resulta nos já tradicionais “walk-and-talk” característicos das produções envolvendo o roteirista. Experiente ao saber disfarçar as falas mais expositivas (sempre que a personagem de Winslet se entrega a uma delas, muda rapidamente o tom do discurso para tornar a exposição mais natural), Sorkin constrói também rimas narrativas para trazer coesão estrutural ao filme – como ao repetir, nas três épocas, o interesse de Jobs no desenho feito pela filha e, claro, ao salientar sua repulsa a qualquer atraso (algo que, ao ter o padrão quebrado, poderá sugerir uma evolução em sua personalidade). Ainda assim, o ponto alto de qualquer roteiro de Sorkin é mesmo o duelo verbal entre suas criações, que adotam um ritmo típico das screwball comedies, exaurindo aos poucos o espectador (mas uma exaustão positiva, ressalto).
O curioso, porém, é constatar o contraste entre os estilos de Sorkin e Danny Boyle: se o primeiro constrói roteiros a partir de diálogos, o segundo sempre se mostrou mais interessado na ação e na energia da câmera. Em outras palavras: um não para de falar; o outro, de movimentar o quadro. Em algumas sequências, o embate é prejudicial ao filme (os ângulos holandeses e a fotografia contrastada na passagem que aborda a reunião da diretoria chega a se entregar descaradamente ao mais puro expressionismo, sobrepondo-se ao que está sendo dito), mas em outros instantes sugere uma complementação orgânica entre direção e roteiro – e, neste aspecto, Boyle e o diretor de fotografia Alwin H. Küchler acertam em cheio ao investirem em uma dessaturação crescente à medida que os anos passam, tirando as cores da vida de Jobs enquanto esta se torna mais bem sucedida, mas também mais estéril. (Além disso, é preciso aplaudir o plano no qual o protagonista aparece deitado no sofá enquanto o Mac sobre a mesa em frente acaba criando a impressão de que sua cabeça foi substituída pelo computador, numa brincadeira visual rápida e divertida.)
Eficiente em sua montagem fluida, que oscila com elegância entre os vários períodos (incluindo os breves flashbacks contidos nestes), Steve Jobs é hábil, por exemplo, ao ilustrar visualmente o esforço do personagem-título para afastar as lembranças dolorosas, cortando para flashes de cenas anteriores que praticamente piscam na tela enquanto ele procura memorizar alguns dados. Para completar, o design de produção inclui sua parcela de rimas visuais – e minha favorita reside na contraposição entre o primeiro ato, quando Jobs aparece estudando vários papeis metodicamente espalhados pelo chão, e o ato final, quando voltamos a vê-lo decorando algo, mas agora com os painéis de vidro transparentes sobre sua cabeça repetindo o padrão de distribuição original dos papeis.
Como se não bastasse, a música de Daniel Pemberton é igualmente eficiente: reparem, por exemplo, como ela inicialmente parece evocar os acordes de afinação de instrumentos quando Jobs e Woz entram no fosso de uma orquestra, criando uma atmosfera dissonante e tensa, finalmente desaparecendo quando os dois homens atingem um momento amigável enquanto se sentam um do lado do outro. Depois de alguns instantes nos quais o diálogo domina, Jobs, claro, volta a ferir Woz com suas palavras – e, no preciso momento em que toca o joelho do parceiro ao se levantar, a incômoda música de Pemberton volta a cobrir a cena. Sutil, mas incrivelmente eficaz.
Ostensivamente concluindo que, para Jobs, a aparência era tão ou mais importante que a substância, o filme ilustra o argumento ao trazê-lo rejeitando usar a imagem de Alan Turing (que o protagonista admira) por saber que seu rosto não será reconhecido – ou seja: se não é funcional do ponto de vista de marketing e venda, não é funcional e pronto. Não é à toa que ele passa a moldar sua persona pública com tanto cuidado ao retornar à Apple, criando o visual que todos hoje conhecemos (camisa preta de gola alta, calças jeans e óculos redondos): é como se ele finalmente tivesse percebido que o maior produto que tinha para vender era si mesmo. Assim, fica explicada sua insatisfação ao ver a capa da revista “Time” trazendo um computador e não seu rosto: sim, ele defendia a revolução tecnológica promovida pelos computadores pessoais, mas mais importante do que a revolução em si era a celebração do homem que a possibilitou: Steve Jobs.
A estratégia funcionou? Basta testemunhar as plateias lotadas que aguardam e celebram cada lançamento da Apple mesmo sem saber o que surgirá no palco. Jobs ajudou a criar a cultura da adoração do deus-marca, do deus-produto. Se parece belo e moderno, tem que ser essencial, não?
Ao apontar o fascínio de Jobs pelo design – mesmo sabendo que não há nada dentro da bela superfície (lembrem-se do NeXT) –, o longa acaba por explicar o mistério por trás do homem: seu Rosebud é a supervalorização da estética sobre o conteúdo.
E, não por acaso, ao reconhecer suas falhas ele só consegue se referir a si mesmo como um produto defeituoso: “I’m poorly made”. O que não o tornava menos brilhante do ponto de vista puramente funcional, claro.
14 de Janeiro de 2016