Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
27/01/2016 | 14/08/2015 | 4 / 5 | 3 / 5 |
Distribuidora | |||
Universal | |||
Duração do filme | |||
147 minuto(s) |
Dirigido por F. Gary Gray. Roteiro de Jonathan Herman e Andrea Berloff. Com: Jason Mitchell, Corey Hawkins, O’Shea Jackson Jr., Neil Brown Jr., Aldis Hodge, Marlon Yates Jr., R. Marcos Taylor, Carra Patterson, Elena Goode, Keith Stanfield, Marcc Rose, Tate Ellington e Paul Giamatti.
A Arte é um reflexo da sociedade que a produz – ou melhor: das diversas comunidades que dividem espaço (ou lutam por ele) dentro do que consideramos “Sociedade”. Assim, quando formadores de opinião condenam manifestações culturais como o rap, o narcocorrido ou o funk carioca – sempre certificando-se de afirmar que estas “não são arte de verdade”, o que estão fazendo (ou tentando fazer, pois jamais conseguirão) é cobrir os próprios olhos para realidades que não querem enxergar, como se o simples fato de não a reconhecerem se encarregasse de anulá-las. Além de representar uma postura elitista, alienada e alienante, esta relutância em confrontar realidades distintas das nossas, bem como suas resultantes manifestações culturais, acaba por impedir que ampliemos nossa visão de mundo, mesmo que o torne mais confortável ao evitar que reconheçamos seu lado mais sombrio e injusto.
Quando o N.W.A. (Niggaz Wit Attitudes) surgiu em cena, na segunda metade da década de 80, suas letras repletas de palavrões, violência e referências elogiosas ao universo do tráfico e das gangues presentes nas periferias (geográficas e econômicas) dos EUA foram imediatamente condenadas por boa parte da mídia tradicional e por representantes das autoridades e do Estado, que preferiram ignorar o sintoma que representavam em vez de usá-las para alimentar debates que seriam fundamentais para a evolução da sociedade. Encabeçado pelos rappers Eazy-E (Mitchell), Ice Cube (Jackson Jr.) e Dr. Dre (Hawkins), o N.W.A. tem sua trajetória recontada neste longa, desde sua origem em Compton (cidade pobre localizada perto de Los Angeles) até sua ascensão com o envolvimento do empresário Jerry Heller (Giamatti), passando pelos desentendimentos entre seus integrantes e suas consequentes carreiras solo.
Produzido por Dre, Ice Cube e por Tomica Woods-Wright (viúva de Eazy-E), Straight Outta Compton não é, claro, a mais objetiva das cinebiografias – e o simples fato de transformar DJ Yella (Brown Jr.) e MC Ren (Hodge), componentes importantes do grupo, em meros coadjuvantes é um atestado disso. Por outro lado, aquele que é provavelmente o elemento mais importante da história do N.W.A. – as condições sociais, políticas e econômicas que tornaram sua criação inevitável – é muito bem representado no longa, que tem início revelando as casas pequenas, humildes e geralmente superlotadas nos quais seus integrantes moravam e também a brutalidade policial que os perseguia.
E “brutalidade” é a palavra exata a ser usada, sendo a cor da pele de suas vítimas a única faísca necessária para dispará-la: em certo momento, por exemplo, Dr. Dre é preso apenas por (literalmente) estar parado e, em outro instante, os rappers são abordados pela polícia e humilhados simplesmente porque conversavam na calçada em um intervalo das gravações de seu álbum de estreia – e é sintomático e revelador como o empresário do grupo, irritado com a ação dos policiais, é capaz de gritar com estes e confrontá-los sem passar pelo mesmo procedimento violento praticado contra os jovens, já que, ao contrário destes, conta com uma imensa vantagem: ser branco. São cenas como estas que ilustram de forma visceral a revolta experimentada pelos músicos e que acaba encontrado vazão em suas obras. Ora, passando por tudo que passaram, a pergunta não deveria ser “por que suas letras são tão agressivas?”, mas sim “como eles poderiam gritar algo diferentes de ‘fuck the police’”?
Aliás, umas das grandes virtudes da direção de F. Gary Gray (que começou sua carreira dirigindo vídeos para Snoop Dogg, Dr. Dre e o longa Sexta-feira em Apuros, escrito e estrelado por Ice Cube) é compreender que as músicas do N.W.A. trazem mais do que letras, mas manifestos. Assim, quando o cineasta recria o show em Detroit no qual o grupo desafiou ordens policiais e apresentou sua canção mais controversa, ele enfoca os três rappers arremessando os braços para a frente, como se iniciando um ataque, no momento em que começam “Fuck tha Police”, cortando em seguida para um plano que flutua sobre a plateia, afastando-se do palco, como se representando a mensagem que se espalhava para as milhares de pessoas ali presentes. Gray, diga-se de passagem, frequentemente emprega a câmera de maneira inteligente para sugerir as situações de seus personagens e seus sentimentos – e quando Eazy-E recebe a notícia de que está gravemente doente, o diretor logo nos mostra o rapper através da pequena janela na porta de seu quarto, prendendo-o em uma caixa sufocante de medo e dor. Da mesma maneira, ao enfocarem uma conversa entre Eazy-E e Dr. Dre pelo telefone, Gray e o diretor de fotografia Matthew Libatique criam uma rima visual ao trazerem os dois sentados ao lado de piscinas, usando a similaridade entre os locais para forçar o contraste através da luz e dos enquadramentos: enquanto o primeiro surge em quadros mais abertos que o deixam menor e sob uma luz fria em um plano mais escuro, o segundo é visto em quadros fechados e sob luz quente, ressaltando a diferença entre as situações de cada um naquele instante.
Mas não só: o design de produção, de modo geral, faz um ótimo uso das cores para expor a natureza dos habitantes daquele universo – e não é à toa que o empresário vivido por Paul Giamatti é visto coberto de dourado (incluindo seus óculos) ao começar a explorar Eazy-E (simbolizando sua ganância) e que o violento Suge Knight (Taylor) dá preferência ao vermelho em suas roupas e na decoração de seu estúdio. Além disso, os realizadores são hábeis ao sugerir a força das canções através dos movimentos intensos de câmera durante as performances musicais, evocando também um intenso tom de ameaça de forma bastante sutil na cena em que Giamatti é pressionado apenas ao ver um enviado de Knight surgir da escuridão da noite.
Enriquecido por um elenco incrivelmente coeso que confere peso a cada personagem, Straight Outta Compton traz, por exemplo, O’Shea Jackson Jr. interpretando o próprio pai, Ice Cube – e a similaridade física dos dois, que já seria uma grande vantagem para o filme, torna-se ainda mais forte graças à performance intensa do estreante. Enquanto isso, Corey Hawkins compõe Dr. Dre como um artista apaixonado pelo processo de criação, usando a “pureza” do jovem como um ótimo contraponto à motivação do parceiro Ice Cube, que encontra na raiva sua principal inspiração. Fechando o elenco principal, Jason Mitchell transforma Eazy-E no protagonista do longa ao viver o arco narrativo mais facilmente identificável, iniciando a projeção como um pequeno traficante que, de forma perspicaz, percebe que logo acabará morto caso não abandone aquele universo e que, manipulado por um empresário inescrupuloso e prejudicado pela própria ambição, se afasta das origens que tornaram sua música possível, redescobrindo-as quando, ironicamente, seus excessos começam a cobrar seu preço.
Evitando se tornar episódico ao cobrir cerca de uma década da vida dos personagens, o filme aborda boa parte dos principais momentos de suas carreiras embora convenientemente passe por cima da misoginia de várias das letras que criaram - e que, claro, faz parte, lamentavelmente, da própria cultura do hip-hop. Mais grave, por outro lado, é observar como o diretor chega, em certos momentos, a transformar em piada o tratamento machista dispensado pelos músicos a algumas de suas groupies (numa cena que, com a fala “Tchau, Felicia!”, faz referência direta a Sexta-feira em Apuros), emulando desnecessariamente o comportamento dos homens que retrata.
Esta misoginia casual, diga-se de passagem, chega a ser irônica se considerarmos a força com que Straight Outta Compton denuncia o racismo igualmente corriqueiro enfrentado por seus personagens, que eram constantemente atacados pela mídia (através de seus representantes normalmente brancos) e oprimidos pelo sistema – e, não por acaso, em certo instante vemos uma manifestação contra o N.W.A. protagonizada por caucasianos e acompanhada com tranquilidade pela mesma polícia que, diante de um solitário homem negro, não hesita em partir para a violência.
Aliás, se há um momento devastador em Straight Outta Compton é aquele no qual os três astros, agora ricos e famosos, acompanham com choque a absolvição dos quatro policiais que espancaram Rodney King em 1991 – um choque que ilustra como, mesmo já repletos de cicatrizes emocionais, psicológicas e físicas, ainda esperavam que a sociedade finalmente agisse com alguma justiça diante do abuso sofrido pelas minorias.
Sim, àquela altura, como rappers célebres, eles estavam a anos-luz de distância da realidade de um taxista pobre como King, mas algo maior ainda os mantinha próximos: a cor de suas peles, que, independentemente do status que atingissem, ainda os relegaria à condição de cidadãos de segunda classe.
Uma condição que, ao permanecer intacta um quarto de século depois, é um reflexo de como seguimos profundamente falhos como espécie.
26 de Janeiro de 2016